Apago a palavra que acabei de escrever,suspirando. A borracha mancha a droga do caderno pela terceira vez na mesma página.
Um ano a mais, um a menos, não faz a menor diferença para mim. Mas completar 25 anos me indica que é meu ultimo ano na faculdade de contabilidade, e isso é um conforto.
Marcos, meu professor,escreve mais alguma palavra no quadro branco e eu tento me concentrar na aula, sem sucesso.
Mordisco os cantos da unha, ansiosa. Sinto meus braços suarem debaixo da blusa de couro, mas não quero tirar.
Não aqui, e não agora.
Meu celular vibra em cima da mesa com o toque do despertador. São 10 pras 22:00, então guardo meus cadernos na bolsa e levanto na mesa. Marcos olha enquanto saio da sala, 10 segundos antes do sino tocar e todas as salas praticamente vomitarem os alunos para o corredor.
Tento me desvencilhar da maioria até chegar ao portão preto da universidade, quando o ar frio da noite lambe meu rosto e refresca meus braços por debaixo da blusa.
Corro até a minha moto e subo, sentindo o couro do banco debaixo das pernas. Subo o descanso enquanto coloco o capacete e saio pelo portão do estacionamento, a velocidade de 80km/h.
Meu cabelo vermelho voa ao chocar com o vento frio, e pela primeira vez no dia minha ansiedade é controlada.
É meu aniversário e ao invés de um bolo de velinhas, desejo que o caixa do depósito que planejo ir esteja cheio o suficiente para manter durante toda a semana.5 minutos depois, estaciono minha moto bem ao lado do depósito, debaixo de uma árvore. O letreiro em néon pisca as promoções de cimento da semana. Tiro o capacete e o substituo pela máscara de meia preta.
Enfio a mão na mochila, tirando o alicate de construção e minha arma de dentro dela.
Desço o descanso da moto e me preparo.
Sancler tem uma população pequena, não mais de 5 mil pessoas, então há muita confiança entre todos. Sei disso pois deve ser a 10° loja que eu furto esse ano, e todas têm caixas cheios, sem nenhum recolhimento.
Total falta de noção.
Desço da moto e caminho dois passos a porta da loja, segurando o alicate em uma mão e a minha arma em outra. Suspiro antes de chegar perto.
Sempre suo frio antes de qualquer assalto, porém, atrás do depósito, consigo enxergar uma parte do muro da Igreja Jaguá, azul brilhante, em toda a sua glória. Meu corpo todo se arrepia e um vento forte balança alguns fios do meu cabelo fora da máscara.
Olho novamente pra porta do depósito, tentando focar no que tenho que fazer, mas dou um pulo para trás ao retornar à cena.
Saíndo pela porta da frente, há dois ladrões com armas nas mãos, segurando um saco preto pesado. Automaticamente, quando os encaro, ambos me encaram de volta.
Apesar de estar com minha arma, sei da minha minoria, então a abaixo suavemente.
O mais musculoso parece sorrir com os olhos, mas não sei ao certo. A pouca luz que vem do poste é azulada e distorce tudo o que vejo.
O outro, um pouco menos musculo mas de mesma altura, solta um assovio.
_ Veja o que temos aqui- ele diz, passando o saco para o outro. Ele aponta a arma pro meu tórax e dá um passo a frente. - Solta a arma ou eu atiro.
Sinto minha perna tremer e me xingo mentalmente. Porque uma ladra deveria ter medo de dois ladrões, se estava igualmente armada?
Abaixo, colocando a arma no asfalto e as mãos na cabeça. O cara mais musculoso solta uma risada, enquanto passa o saco para a mão esquerda enquanto fecha a porta do depósito com a direita.
O outro, chega mais perto, chutando a minha arma para trás e se aproximando de mim. Sua mão enorme e enluvada seguram meus braços fortemente, me fazendo levantar. Ele passa a corda ao redor dos meus pulsos e me empurra para o poste. Antes de me amarrar, ele tira minha máscara.
Com a droga da luz, não sei se vejo alguma surpresa ou ressentimento em seus olhos, mas sinto seus braços me apertarem ainda mais.
_Acha que vai ficar assim? Quer que eu seja a culpada do seu assalto?- eu cuspo, tentando e me contorcendo ao máximo para me soltar.
_ E você acha que vai ficar assim? Quem garante que você não vai querer bancar a heroína e ligar pra polícia?- ele cospe de volta pra mim, enquanto me revista.
É, eu iria mesmo bancar a heroína. Melhor ele do que eu.
Ele encontra as chaves da minha moto no meu bolso de trás, e procura com os olhos até achá-la debaixo da árvore ao lado.
Ele joga a chave para o cara de trás, que caminha até a minha moto e a liga, se aproximando da porta do depósito, onde estamos.
O homem ao meu lado se aproxima do meu ouvido enquanto me amarra ao poste com a corda e suspira alto.
Não entendo, mas meu corpo todo responde, arrepiando todos os pelos e me dando calafrios por todos os lugares.
_ Se eu tivesse visto você na rua com esse traseiro, talvez tivesse te convidado pra jantar. - ele solta uma risada e dá um nó muito apertado na corda, me fazendo dar um gritinho de dor.
Ele caminha até o deposito novamente e simplesmente faz o imaginável.
Ele liga o alarme e corre até a moto, subindo sem capacete.
O outro cara acelera minha moto, e a ouço até o fim da rua,mesmo com o apito ensurdecedor do alarme.
Me contorço, gritando quando meu pulso entra em contato com a corda, rasgando minha pele.
Ouço um som acima do alarme e suspiro. Tudo podia dar errado hoje.
Afinal, é meu aniversário.
A viatura da polícia estaciona á minha frente, e eu quero gritar antes que ela saia.
Antes que ela me veja.
Mas mesmo assim, ela saí, com seu sapato preto, fardada.
Ela olha pra mim e manda um recado que não ouço pro motorista. Seu cabelo loiro está preso novamente, mas os cachos caem, rebeldes, ao redor do seu rosto.
O motorista desce da viatura. Ele também me olha, superior, mas sinto seu olhar em todo o meu corpo também. Sua cabeça é raspada, e seus olhos parecem cada vez mais familiares pra mim.
Volto o olhar pra ela. Ela caminha até mim, tentando soltar a corda que me amarra ao poste, com sucesso.
Quando sinto minhas mãos livres, quero soltar um suspiro de alívio,mas me controlo. Sei que ainda falta muito para que eu esteja realmente aliviada.
Ela pega minhas mãos e coloca as algemas. O policia me segura firme, me encaminhando pra viatura.
Ouço ela suspirar e balanço a cabeça negativamente.
_ Também é um prazer ver você, mãe.
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A garota da moto
RomanceCami é uma garota da cidade de Sancler. Apesar de sua família ter ajudado na fundação, Cami tem enormes calafrios ao passar por algumas partes da cidade, como a Igreja Jaguá e a delegacia de Polícia. Mas, após viver toda a sua vida em Sancler, Cami...