Anúbis

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"Dedico estas páginas à qualquer cigarro que eu tenha esquecido em algum lugar: no parque uma carteira de crivos paraguaios contrabandeados, desaparecidos durante a chuva, naquela festa de aniversário, um provável roubo de cigarros caros, e tantos outros, nos confins da minha casa... uns achados infumáveis dias depois, outros, claramente foram tomados pelo vácuo entre os mundos... o mesmo vácuo para onde vão todos os guarda-chuvas e cinzas do que já foi gente."

UM

Cidades pequenas costumam ser enjoativas, pois rapidamente se conhece tudo o que há nelas.

De vida noturna até os desastres, tudo parece claro demais. Ainda assim, não há lá muita diferença entre seres humanos de cidade pequena e seres humanos de cidades grandes. De uma forma ou de outra, todos queimam os dias de suas vidas, para exercer uma função parecida a do carvão dentro de uma fornalha: mover a máquina.

Atravessei em direção à loja de conveniências do posto de gasolina, localizado bem na esquina da rua larga de paralelepípedos. Acabara de sair do consultório da doutora Vargas, onde eu trabalhava [queimava os dias] como enfermeira.

Não podia fumar antes do trabalho, a doutora não suportava o cheiro de cigarro. Dizia ela, que causava uma má impressão nos pacientes e concluía, sem poupar o palavreado, que enfermeira com cheiro de cigarro é como uma batina de padre manchada de porra.

Por esse motivo eu saciava meu vício durante a madrugada e pela manhã, antes de tomar banho.

Passava o dia inteiro roendo as unhas e quando chegava a hora de ir embora a primeira coisa que eu fazia ao pôr o nariz pra fora da porta era acender um crivo.

A mocinha do caixa já até me conhecia, pois eu passava ali três vezes por semana, sempre no mesmo horário. Ela sorria com simpatia e logo deixava diante de mim um maço dos filtros vermelhos habituais.

Naquele dia não foi diferente: entrei pela porta, cheguei diante à garota e sem que eu dissesse uma única palavra, ela virou-se para alcançar o maço de cigarros. Paguei com dez reais e recebi de troco uma nota de dois e duas moedas de cinquenta centavos. Me despedi da atendente com um aceno de cabeça e saí, com um sorriso digno de um final de sexta-feira.

Guardei o troco no bolso do jeans e logo comecei a abrir o plástico que envolvia o maço. As horas sem fumar me deixavam ansiosa e eu só conseguia encontrar a paz ao sentir a fumaça impregnar meus pulmões.

Mais um prego no meu caixão!

Coloquei-o entre os lábios e acendi, porém, devido às circunstâncias da noite, ao tragar, não foi o alívio comum que me atingiu e sim a lembrança de meu pai, com seus cachos loiros [tão amarelos que pareciam artificialmente descoloridos], seus olhos claros e seus ares de excentricidade.

Suspirei e continuei: virei à esquerda e depois à direita, subi a ladeira íngreme da rua em passos apurados.

Aquela área, arborizada demais, possuía todas as características perfeitas para um assalto, principalmente naquelas horas, quando os pedestres se recolhiam dentro dos prédios de apartamento da volta, restando apenas um carro ou outro que passava fazendo barulho nas pedras.

Só voltei à velocidade normal ao chegar à área central, movimentada por pessoas soltando do serviço na alegria efêmera de final de semana. Joguei a bagana de cigarro no chão e parei por um instante. Pisei em cima até ter certeza de que apaguei completamente a brasa.

Depois disso só mantive o trajeto, sem desvios e sem prestar muita atenção. Nunca fui apresentada à suposta inspiração que atinge as pessoas ao observar a vida desinteressante dos outros. "A complexidade na monotonia" sempre foi tediosa.

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