1929

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Querida,
há dias estou submerso em meio à um mar de álcool, e o cheiro não me incomoda; isso é o que mais me incomoda. Um dia desses, não me lembro qual, vi uma fotografia sua. Claro que culpei meu caro amigo whisky pela amnésia, e o jurei matá-lo caso me fizesse esquecer sua beleza novamente.
Com um olhar cansado e sábio, o Whisky me respondeu: "Meu caro, és tu que me usa todo dia, e rouba pouco a pouco minha amnésia. Não me culpe por sua indolência". Mas o que diabos um Whisky sente?, perguntei após um tempo de reflexão. "E o que você sente?Além do prazer de roubar o que tenho de melhor?" não pude responder. Continuamos naquele mórbido e confuso paradoxo.
Mal lembro a última vez que senti algo, talvez no parque, na última primavera, quando te vi depois de tanto tempo. Estava tão radiante quanto o sol, tão bela quanto as rosas crescentes do campo, tão leve quanto clima. Lembro de como teu sorriso continuava lindo, e de como andava bem. Lembro que estava com seu vestido lilás, com o cabelo preso em coque, levando um carrinho de bebê.
Meu sorriso que era grande, aparentava sofrer de nanismo, como o seu quando me viu. Lembro que olhou para os lados, talvez buscando uma saída, mas fui eu que me virei e saí.
Lembro vagamente de ter ouvido me chamar, mas não tive coragem para te encarar novamente. Minha coragem se foi quando vi que estava feliz sem mim, e que eu nunca pude te dar o que queria. Talvez a única coisa que eu sinta agora é arrependimento; sinto que eu podia ter te comprimentado, perguntar como as coisas estavam, ou como era o nome de seu pequeno filho. Talvez me fizesse entender.
Coloquei o Whisky para descansar um pouco. Não sei se ele está cansado mesmo, ou se está só cansado de mim. Temo que ele esteja morrendo, mas não sei; talvez ele comece a viver de novo quando eu lhe roubar o restante de amnésia que ainda tem. A morte caberá à mim.
Eu amarrei a corda em um lugar que provavelmente aguentará meu peso, e usarei a cadeira que estou sentado. Não posso me esquecer de colocar essa carta no correio, portanto, melhor eu ir antes que eu esqueça.
Não sei se quero isso, mas sei que a única forma de não ser só mais um peso, é continuando com isso. A razão me deixou confuso, os estudos não valeram de nada, o amor não me manteve de pé. A coragem que eu não tive para te encarar, eu botei toda nesta carta; esse é o meu penúltimo sentimento. Me sinto um covarde tendo em mente o que vou fazer agora; mas observando bem, eu sempre fui.
Meu amigo Whisky retornou à vida, e não para de tagarelar frases de auto-ajuda.
Devo ir, confuso quem souber onde.
Adeus, Katherine.
Com todo amor,
Seu John.

20 de out de 1929, New York

Século XXOnde histórias criam vida. Descubra agora