II

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Terrível.

Absolutamente cruel.

Uma brincadeira de péssimo gosto.

Quem naquele escritório seria capaz de algo tão baixo?  Celina se perguntava olhando atônita para os colegas espalhados pelas estações de trabalho que preenchiam o grande e tedioso salão de paredes brancas e carpete gelo.

— E aí, Celzinha? É namorado, peguete ou admirador secreto? O povo quer saber!

A pergunta feita num tom detestável cheio de malandragem e falsa intimidade só poderia, claro, ter saído da boca de Diego, o engraçadinho-mor que agora girava na cadeira ora na direção da colega de óculos, ora na dos outros três idiotas que dividiam a baia com ele e formavam uma espécie de penelinha de cafajestes do escritório.

A moça, porém, nem ouviu.

Sentindo o nó na garganta apertar e os olhos se encherem de lágrimas, correu para o banheiro.

Não estava preparada para tanta covardia.

Trancada sozinha no reservado só fazia chorar olhando para o cartãozinho tão pequeno, tão nafasto. Uma aranhinha branca e muito peçonhenta em meio a tão belas flores.

Por que estavam fazendo aquilo? Será que era tão difícil assim imaginar que sua vida já era ruim o suficiente sem aquele tipo de maldade?

É verdade que nem sempre era uma pessoa agradável no convívio, a mesma refletia tentando encontrar motivações para o crime. Podia ser bastante refratária com os colegas às vezes. Talvez já tivesse falado mal de um ou outro por lá. Especialmente daquele Diego irritante que se achava o galã do pedaço só porque tinha um par de olhos cor de mel. E aquela Glaucia também era um saco. Tremenda de uma folgada só porque era boazuda e tinha costas quentes, e sabe-se lá mais o que, com o chefão.

Que ódio estava de toda aquela gente. Queria mandar uma coroa de flores para cada um deles, pois estavam mortos para ela.  

— Celina? — a voz da bonitona chamou de repente por trás da porta dissipando os pensamentos trevosos — Tá tudo bem contigo?

— Não.

— Poxa, não fica assim não, menina... — a morena prosseguiu depois de entender que a resposta da outra seria só aquela mesmo — Já falei pro Diego não te torrar a paciência. Pode ficar tranquila. Não precisa dar satisfação da sua vida pra ninguém não, viu? Sei que não gosta.

Aquele tom condescendente soou para a chorona só um pouco menos insuportável que o de Diego, mas ao menos serviu para lhe atentar para um detalhe: talvez nem todos soubessem sobre a brincadeira abjeta. Se não se mostrasse ofendida, pensou, se voltasse a trabalhar como se nada tivesse acontecido estragaria ao menos um pouco a diversão do monstruoso remetente anônimo.

— Tudo bem. — a moça disse firme abrindo a porta do reservado depois de enfiar o cartão no fundo do bolso — Só fiquei um pouco emocionada.

— Ah, é emocionante mesmo! — a bonita concordou com um pequeno sorriso. Prosseguiu  observando pelo reflexo do espelho da bancada da pia a colega tirar os óculos para lavar o rosto ainda vermelho do choro — Quando é de quem a gente gosta é lindo, né?

Celina evitou responder ou fitá-la de volta. Deu apenas um suspiro profundo antes de se retirar.

De volta ao salão decidiu seguir com o plano de não transparecer aborrecimento. Para isso precisava só focar no trabalho.

Era difícil se concentrar, porém, com as malditas rosas mescladas ocupando metade da sua mesa e zombando da sua cara. Pensou em jogá-las na lixeira embaixo da mesa, mas não queria dar motivos para perguntas inconvenientes.

Da sua baia a moça tinha uma boa visão de todo o escritório. Espreitava cheia de raiva e desconfiança a movimentação de todos os colegas. Eram todos suspeitos. Todos. Como sobrevivia naquele ninho de cobras? Ninguém gostava dela lá. Ninguém. Devia ser sempre motivo de chacota durante o almoço, que ela quase nunca tirava e quando tirava comia sozinha porque ninguém curtia o vegano da esquina.

Passou um bom tempo ali remoendo as máguas e ouvindo cochichos e risadas de escárnio disfarçadas de conversinhas de trabalho.

Naquele interim, o telefone tocou algumas vezes sem que ninguém respondesse nada quando ela atendia, coisa que já deveria ter acontecido algumas vezes em todo o tempo que trabalhara ali, mas que naquele dia lhe pareceu a mais pura provocação.

Havia de descobrir quem estava por trás daquele complô, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida. Até contato de detetive particular tratou de procurar na internet.

A pesquisa, entretanto, precisou ser interrompida no susto quando Diego voltou a lhe importunar de forma ainda mais inconveniente:

— Celzinha, preciso falar contigo. — disse baixo e rápido depois de apoiar o quadril na beira da mesa dela. Prosseguiu entredentes  — Vamos até a copa comigo?

— Não! — a moça respondeu franzindo o rosto numa mistura de indignação e surpresa com a proposta, depois clicou numa planilha aberta e voltou a enfiar a cara no computador — Tô ocupada, não tá vendo?

Ele se abaixou então, apoiando no braço da cadeira e aguardou em silêncio a colega lhe dirigir o olhar, o que ela obviamente teve que fazer ante aquela situação cada vez mais estranha.

— Disse pro Carpinetti que eu disse que ele podia ir embora com o carro quando ele veio aqui devolver a chave?

Celina respirou muito aliviada quando mesmo sem entender a pergunta direito percebeu que se tratava de assunto de trabalho.

— Não... Eu disse... que você disse.... que ele podia ir pra casa porque ele estava passando mal.

— Nunca disse isso.

— Disse sim! —  ela pegou imediatamente o celular para mostrar — Aqui a mensagem que eu te mandei: Rafael do T.I tá passando mal. Não vai poder te esperar, ok?  Sua resposta foi um emoji de cocozinho e uma mãozinha de positivo. Entendi que era um ok! 

— Não, não, Celzinha... Rafael do T.I é o nosso parça lá do offshore, pô! Que organiza passeio de rafting! Pensei que tinha passado aqui pra me dar um alô e deu caganeira, sei lá... — explicou agoniado coisas que Celina não fazia a menor ideia do que se tratavam — Esse Rafael que veio aqui ontem é o Rafael Carpinetti... O idiota do Carpinetti do T.I aqui de baixo! Aquele noinha careca cabeludo que não sei nem como passou no processo seletivo da empresa...

— Não tenho nada com isso, Diego! — ela cortou rosnando muito raivosa — Eu era só a única pessoa aqui nesse escritório na hora do almoço pra variar. Tive que ajudar o homem que começou a passar mal aqui, se acabando de chorar que estava cheio de dívida e não tinha mais como pagar, coitado! Se essa chave não foi pega quando tinha que ser, o problema é seu. Se "noinha" passa em processo seletivo, o problema é da Glaucia e da turminha dela ali no recrutamento. Meu trabalho é outro! Tô cansada de ser legal com vocês e ainda ser sacaneada!

— Ih, qual é, mulher? Tá nervosinha? — ele se levantou e voltou a falar no tom desagradável de sempre — Poxa, todo mundo achando que você ia ficar mais simpática depois de ganhar florzinha... Não foi baratinho esse buquê não, hein? Faz o que pra ganhar a vida esse teu namorado? Espremedor de limão?

Confronto direto nunca havia sido o forte de Celina, que àquela altura já tremia de novo. Chegou a se levantar da cadeira, mas a resposta demorou a vir.

No tempo em que vacilou ali em silêncio só encarando o cafajeste sem saber exatamente o que dizer, o moço da floricultura voltou a pisar no escritório.

Trazia mais duas dúzias de rosas mescladas. 

Rosas MescladasOnde histórias criam vida. Descubra agora