Capítulo 1

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Como toda quarta feira eu passei a maior parte da tarde escondida atrás do balcão esperando que o Sr Hoffs não perguntasse por mim. Susan é uma funcionária tão exemplar que jamais mentia para um cliente. Mesmo que eu implorasse. 

Mas é claro que ele perguntou por mim. Então tive que engolir todo o meu orgulho e caminhar até ele. Fui inundada por todo o tipo de pergunta sobre a minha vida e mesmo que eu desse as mesmas repostas evasivas de sempre, ele simplesmente não desistia de continuar tentando. 

Senti o cheiro de incenso e cigarro invadir a galeria e soube que minha avó havia aberto a porta do seu estúdio. O que só podia significar duas coisas: ela terminara seu mais novo quadro ou... ela simplesmente se cansou dele. De toda forma eu entro, pois alguém precisa abrir as janelas. 

- Parece que sua artimanha funcionou muito bem! - Aponto para o detector de fumaça bloqueado com toalha e fita adesiva. - Não que eu aprove! - A relembrei deste detalhe enquanto abria as janelas para trocar o ar daquela sala abafada e cheia de fumaça. 

- Querida - minha avó disse se esticando em seu sofá e colocando as pernas para cima - não é possível ser criativa sem um pouco de nicotina. 

É claro que não havia qualquer estudo científico ou qualquer razão real para aquela afirmação, mas é claro que Dona Alice tinha suas próprias convicções da qual não abria mão. Alice Collet, minha avó materna, sempre foi uma artista. Ouvi diversas histórias de como ela rabiscava paredes quando mais nova e das inúmeras vezes que foi suspensa por querer dividir sua arte com as paredes do colégio. Minha avó não era apenas artista, era visionária e fazia questão de que as pessoas soubessem disso. Sempre com ideias liberais de mais e grande apreço pela rebeldia teve sua visão de mundo reduzida as telas quando se casou. Minhas tia avó, Marissa, me disse que nunca acreditaram que ela se casaria, mas até mesmo minha avó, a indomável, se apaixonou. 

E o novo quadro era mais um sobre ele. Minha avó pintava diversas coisas, até mesmo quando faziam algumas encomendas como copiar uma foto. Ela dizia que seu tempo de arte para revolucionar havia passado e que este era o cargo dos jovens, mesmo que eles não tivessem tanto interesse nisso. Entretanto, sempre que sobrava algum tempo para pintar por prazer e por seu próprio gosto os quadros acabavam resultando em alguma parte da sua vida. Na semana passada ela havia pintado uma criança correndo por uma praia e uma casa de madeira ao fundo. Eu conhecia as histórias e sabia que aquela casa de dois andares e janelas grandes e azuis só poderia ser a casa da infância de minha avó e a menina de cabelos loiros era ela. Um quadro tão lindo que vendeu em questão de minutos. Minha avó apenas não sabe que quem comprou fui eu. 

 A pintura secando é um olho. Um olho muito bem pintado com todos os mínimos detalhes e raios coloridos saindo de dentro dele. É como se Dona Alice quisesse demonstrar todas as emoções que aqueles olham pudessem transmitir. Quem o conheceu sabe que aqueles olhos azuis vibrantes só podem pertencer a uma pessoa. Thierry Collet, meu avô. 

- Acho que esse é o seu quadro mais bonito sobre os olhos de vovô! - Eu afirmei enquanto analisava o quadro depois de ter ligado os ventiladores.

- Ele tinha os olhos mais lindos! Eles refletiam um brilho que apenas um coração puro tem - Ela sempre dizia isso e eu sempre acreditei - Você se lembra deles, não lembra? - Ela olhou para mim sorrindo. 

- É claro que eu me lembro! - Sorri de volta. 

                                                                                  -- * -- 

A gritaria dos meus irmãos podia ser ouvida da entrada da casa. Respirei fundo e abri a porta. Adam e Aaron, os gêmeos, estavam pulando no sofá e minha minha mãe gritava da cozinha para que eles parassem, mas eles nunca paravam. Os dois pestinhas de 5 anos são filhos do casamento mais recente de minha mãe, são crianças lindas como ela, mas detentores de um gênio forte e, muitas vezes, insuportável. 

- Vocês vão acabar me deixando louca! - Ela gritava. 

"Tem certeza de que você já não está?", pensei, mas nunca ousei dizer isto em voz alta. 

O hall de entrada estava tomado pelos brinquedos jogados e pensei duas vezes se deveria deixar a minha bolsa ali. Optei por carrega-la até o meu quarto com medo dos gêmeos mexerem, mas os saltos definitivamente ficariam no armário, não andaria com eles nem mais um passo, mesmo que corressem o risco de acabarem em dois pés infantis mais tardes. 

Não pensei duas vezes antes de caminhar diretamente para a escada de madeira com soldadinhos de plásticos espalhados. Os gêmeos gostavam de ver mamãe se desdobrar para descer ou subir as escadas sem pisar em seus obstáculos. Não era uma brincadeira da qual minha mãe tinha consciência.  

- Cheguei! - Gritei e subi rapidamente, antes que minha mãe pedisse ajuda para controlar os meninos. 

Bati duas vezes na porta do meu irmão do meio e abri. Oliver estava do jeito que eu imaginava. Fones de ouvidos, mas sem estarem conectados, e um livro na mão, Anna Karienina de Liev Tolstói, não estou surpresa. 

- Cada família infeliz é infeliz a sua maneira, certo? - Disse sorrindo. 

- Cada uma delas! - Ele sorriu de volta. 

- Tudo bem? - Perguntei ainda encostada no batente da porta e a segurando apenas meio aberta. 

- Ah - ele suspirou - Tudo! E com você? 

- Tudo certo! 

Antes de sair, eu entrei no quarto, o beijei na testa e baguncei o cabelo liso e alaranjado como o meu. Ele apenas sorriu. Oliver é conhecido na escola como o menino gênio, é imensamente elogiado por todos os professores e a diretora tem uma foto com ele em um dos porta-retratos da sua sala. Mas para mim ele é apenas o Oliver, meu irmãozinho caçula de 14 anos, com um dos corações mais doces que eu já vi. 

Ainda na porta, eu o olhei mais uma vez para ele e me lembrei porque nunca me esqueceria dos olhos de meu avô. Porque Oliver tem os mesmo olhos. 

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⏰ Última atualização: Apr 30, 2019 ⏰

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