A MENINA QUE ESPREITA O MUNDO.

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Saí do trabalho por volta das 22h. Peguei o ônibus às 22h32. Sempre adorei pegar o ônibus tarde da noite, pois a calmaria é perfeita, é na hora que leio, penso na vida, olho o meu mundo invisível em volta do mundo que muitos não largam por nada...

Dividi meu assento com uma criança — creio que ela tinha uns 10 anos de idade — que estava espreitando, pela a janela, o lado de fora, ao meu lado direito...

— Oi? — a saudei com um tímido sorriso. — Cadê a sua mãe, ou pai? — a perguntei.

Ela apenas me olhou e, sem nenhuma resposta, tornou a olhar o "mundo lá fora."

Eu não queria intimida-la, então, resolvi deixa-la em seu cantinho.

— O nosso mundo é tão cruel quanto a minha família. — ouvi a sua pacata voz em meus ouvidos. O barulho dentro do ônibus abafava um pouco a sua voz, mas ainda pude ouvi-la, ainda pude me comover com a sua frase.

— O que aconteceu? — eu a encarei no reflexo do janelão de vidro pouco embaçado de barro. Seus olhos fitavam o chão molhado da chuva que caía lá fora enquanto a ouvi dizer:

— Eu pensei que minha mãe não fosse me abandonar...

— Como assim? — disse atordoado, já no ponto de mandar o motorista parar o ônibus.

Olhei para frente e observei que o motorista me encarava pelo o grande retrovisor interno com um olhar desconfiado.

— Eu só queria ir para casa, senhor! — ela clamou.

— Onde você mora, pequena? — olhei em seus olhos ainda no reflexo do vidro sujo.

— Não sei, senhor.

— Temos que ligar para a polícia.

Me levantei e fui até o motorista enquanto ele me via se aproximar no reflexo do retrovisor.

— Senhor! — falei em voz alta, pois o barulho do motor era ensurdecedor onde estávamos. — Tem uma menina lá trás que está perdida. Temos que passar em um posto policial para deixa-la com as autoridades competentes. — Ele me olhava rapidamente com um olhar assustador e retornava a encarar a rua nebulosa.

— Quem? — ele gritou.

— Uma pequena menina que está lá trás, senhor. — Apontei com o meu indicador direito em direção onde ela estava.

O motorista olhou rapidamente para trás pelo o retrovisor e disse:

— Qual menina?

— Hã? — Olhei também pelo o retrovisor e me virei rapidamente para ver melhor.

Meu corpo congelou. Não havia ninguém lá trás, a não ser cadeiras vazias e luzes azuladas, e um pedaço de um enorme pano nos confins do ônibus.

Olhei para o motorista sobre o ombro e voltei meu olhar no fundo do ônibus.

Segurei nas barras de seguranças enquanto caminhava lentamente em direção a parte de trás... Minhas pernas estavam bambas, meu corpo transpirava, de vez em quando eu tombava para os lados devido as curvas que o motorista fazia com o ônibus. Passei minhas mãos sobre as barras de segurança das cabeceiras dos assentos até chegar bem perto da porta traseira.

— Olá, menina? — balbuciei.

Me aproximei ainda mais dos assentos traseiros e, quando cheguei bem perto do aglomerados de panos, tive a coragem de puxa-lo de uma só vez...

— Que merda! — gritei me esquivando para trás o mais rápido que pude e caí com todo o meu peso... Bati a minha cabeça em algum dos bancos e acabei desmaiando...

2

Dentro do Hospital, relatei mais de dez vezes para os médicos que me atenderam e para um policial que fora chamado pela a segurança, devido a minha "história" ser um pouco grave.

— O motorista do ônibus nos contou a versão dele. — disse o policial — Ele nos falou que você estava falando sozinho enquanto olhava para ele.

— Eu estava falando com uma garotinha, senhor — me exaltei — Ela estava querendo que eu a levasse para a sua casa, mas ela não sabia o caminho...

— Calma, senhor. — Um dos médicos pôs a mão esquerda sobre meu ombro me acalmando.

— Eu tenho a certeza que falei com ela...

No final de toda aquela bagunça em minha cabeça, fui diagnosticado como um esquizofrênico não perigoso. Me internaram no hospital psiquiátrico da minha cidade e passei mais de um ano...

Foi na madrugada, no dia do meu aniversário, que ouvi um sussurro na "cela" ao lado que me deram motivos para sorrir:

— Eu a vi... Eu juro que eu vi essa garotinha. Ela ainda está naquele ônibus... Eu tenho que ajuda-la... Eu vou te levar para a casa garotinha, não se preocupe.



FIM...

A MENINA QUE ESPREITA O MUNDO.Where stories live. Discover now