Capítulo 2

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— Abram o portão!

  Fui acordada por um comando incisivo, mas era muito difícil processar o que acontecia.
  As imagens permaneciam borradas, as falas interrompidas e meu raciocínio fragmentado.

— É Rick, abram! — acatou uma voz distante.

  Um rangido estrondoso ecoou, como se pesadas barras de ferro estivessem se chocando umas com as outras.

  Inúmeras vozes inundaram o ambiente. Quase um tumulto.

— Onde estou? — balbuciei em estado letárgico. Devia ser quase noite.

— Shh! Você tinha que acordar logo agora? Fique quieta — reclamou ele, cobrindo meu rosto com uma manta e me apertando ainda mais contra seu peito.

  Senti o familiar calafrio se espalhando por minha pele e a fraqueza aumentar. O pano se deslocou ligeiramente, deixando um de meus olhos a descoberto. Pude ver que estávamos sobre um cavalo e atravessávamos portões de ferro que davam acesso a uma enorme muralha
de rochas negras. Na muralha, uma fenda se abria para as entranhas de uma montanha, uma câmara tão ampla que era impossível enxergar seus limites.

  Para onde Richard estava me
levando? Por quanto tempo fiquei desacordada? Meu queixo quase despencou quando vi de onde vinha a ínfima claridade que atingia o local: de uma abertura em formato esférico bem no topo daquela montanha negra. Minha nossa! Estávamos no interior de um vulcão adormecido. Seria possível?

  Existiriam vulcões extintos no deserto do Saara? Tudo ao meu redor não era apenas negro, era sombrio. Ambiente nada receptivo. Pessoas com fisionomias hostis.

— Richard está sozinho! — Um grito ecoou na penumbra.
— Ele está trazendo uma mercadoria diferente — berrou um homem de aparência ruim.
— Abram caminho — ordenou Richard, forçando o animal pela multidão de mendigos.
— Deixe-me ver o que você traz consigo, resgatador — instigou uma mulher maltrapilha que se aproximava de nós. Havia vestígios de sangue em seu rosto sujo.
— Afaste-se! — rosnou Richard e vi um músculo estremecer em sua mandíbula, mas a mulher pouco lhe deu atenção. Ela parecia uma espécie de líder e uma multidão agitada vinha atrás dela.
— Por que não quer que nos aproximemos da sua prisioneira? — bradou a mendiga com aparência maligna enquanto fazia sinal para que os demais nos cercassem. — Por Tyron, é ela! — soltou estupefata.
— Desapareçam! — O comando de Richard saiu frio e forte como o aço, perigosamente calmo.
— Pelo visto já foi enfeitiçado. Deve ser enlouquecedora a sensação que uma híbrida pode dar, não? — a mulher continuava a desafiá-lo.

Como ela sabia?

  O corpo de Richard enrijeceu imediatamente ao som da palavra “híbrida”.

— Vou querer sentir também — acrescentou o homem mal encarado ao lado dela.
— Quem tocar um dedo nela morre — advertiu Richard com os dentes cerrados. — Não vou avisar novamente. Saiam da minha frente — ameaçou feroz, empinando o cavalo negro nas patas traseiras.
— Onde estão os outros, Richard? — A mendiga tinha um sorriso diabólico.—Ah! Entendi... — soltou uma gargalhada artificial e comandou: — Peguem-na!

Dois homens precipitaram-se em nossa direção. Senti um puxão em minha perna, seguido de um solavanco.

— Arrr! — Richard urrou, quando, como num passe de mágica, um punhal e uma espada surgiram em suas mãos. Nosso cavalo girou e desatou a lançar coices no ar. Quando o animal recolocou as patas dianteiras de volta ao chão, finalmente compreendi o que acabara de acontecer: mortes. A velocidade com que Richard eliminou os pobres coitados foi assustadora não apenas para mim como para todos ali. Um deles caiu morto, com o punhal cravado no crânio antes mesmo de ameaçar pular sobre nós. O outro chegou a agarrar uma de minhas pernas, mas sua cabeça tombou antes do próprio corpo. Richard o decapitou num piscar de olhos.

— Desapareçam antes que eu mate a todos, seus vermes! — vociferou Richard encarando a mulher. — E vou começar por você.

  A mulher o enfrentou com o olhar, mas não arriscou. Ameaçada, levantou a mão direita e fez uma espécie de código com os dedos. Foi o suficiente para a multidão de mendigos se afastar e abrir passagem para nós. Com a espada em punho, Richard saiu galopando acelerado por um caminho esculpido nas rochas negras. Uma imponente construção surgiu após cavalgarmos por uma área que parecia abandonada há muito tempo. Aquelas formações
rochosas escurecidas mais faziam lembrar um palácio consumido pelo fogo. Um palácio negro. Seus altos muros eram resguardados por um exército em prontidão, mas não houve
problemas com a nossa aproximação. Os enormes portões se abriram sem a necessidade de qualquer tipo de comando ou negociação. Aguardavam por nós.

— Agora você vai saber quem realmente sou e tenho o pressentimento de que não vai gostar, Tesouro — confessou com o olhar ardente. Suas pedras azuis-turquesa chegaram a me queimar. Eu estava zonza demais, fraca demais para entender ou reagir. — Bem-vinda ao meu mundo.

Seu mundo? O que ele queria dizer com aquilo? Quem é você afinal, Richard?

— Abram caminho! É Richard! — anunciou eufórico um homem lá do passadiço. — Ele está com a híbrida!

  Quando os portões se fecharam atrás de nós, deparei-me com um dos pátios que cercava o castelo negro. Ele era largo, mas pouco extenso, e cem metros adiante havia um novo muro de pedras escuras, da mesma proporção que o primeiro. No passadiço do segundo muro, pude avistar vários homens sacudindo os braços sem parar. Sem cerimônia, eles lançavam seus
gritos de vitória, saudações e urros emocionados no ar. Minha captura seria o motivo de toda aquela alegria? Por que aquele lugar era tão protegido?

— Por Tyron! Você conseguiu! — prestando continência para Richard, soltou alegre um homem armado da cabeça aos pés. Ele vinha à frente de um grupo de rapazes que trajavam roupas pretas semelhante às usadas por guerreiros árabes da Antiguidade.

— Já se esqueceu com quem está falando, homem? — a resposta de Richard saiu cheia de convencimento. Abaixo de mim, podia sentir seus músculos dilatados, como se ele
estivesse estufando o peito de satisfação.

— Rick conseguiu! Rick conseguiu! — berrava animado um grupo de adolescentes que vinha correndo em nossa direção. Todos também de preto.

— Ganhamos. A híbrida é de
Thron!

Thron”? Que maluquice era aquela? O frio terrível da minha barriga sobia ao
pescoço. Meu Deus! Não podia ser! Eu não queria aceitar as evidências, mas uma coisa era certa: o local onde estava era absurdamente inóspito. Mesmo sob a escuridão, era palpável a diferença em relação a tudo que eu já tinha visto na vida. E olha que eu já havia conhecido
muito lugar esdrúxulo em minhas andanças pelo mundo com minha errante mãe.

— Avisem a Shakur! — ouvi um grito e, em seguida, o som estridente de cornetas.

Cornetas?

— Você é uma lenda, resgatador! — exaltou um sujeito que se aproximava de nós. Um bracelete preto, igual ao que Richard usava, brilhou em seu pulso.
— Eu sei — a resposta saiu com jeito casual.

Primeira constatação: Richard era convencido.

— Sthepan, mande evacuar a saída leste. Tem sombras demais por lá — comandou Richard ao segundo rapaz.
— É pra já, Rick.
— Liquidem a líder e racionem a comida por trinta dias. Pão e água, duas vezes ao dia. É bom que eles aprendam com quem estão lidando.
— Liquidar? — O sujeito pareceu titubear.
— Algum problema? — indagou Richard.
— De forma alguma, Rick — afinou o rapaz.
— Bom. E avise aos outros que, da próxima vez, a represália será muito pior. — Havia ferocidade embutida na sua voz.
— Pode deixar. Eu aviso, Rick. — O sujeito se afastou de cabeça baixa.

Segunda constatação: ele era vingativo.

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⏰ Última atualização: Jun 24, 2019 ⏰

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