O vigia
O que me ronda? Um espectro ou um fantasma? Que sensação é esta que me afeta e que me faz estremecer? Me encontro só, como de costume, porém, hoje nem tanto. Algo me ronda. E tenho certeza disso. O coração aflito e apertado. A mente turva e deslocada. O que me afeta?
Sim, eu tenho certeza que não estou sozinho. Tem algo ou alguém aqui me contemplando companhia. Moro só, não tenho parentes com que me preocupar. Todos já se foram — e dou graças à Deus por isso. Mas hoje, especialmente hoje, não estou só. Algo me ronda. E sinto que ele me conhece bem, pois, a forma que está me penetrando só é possível a partir de uma longa convivência estritamente íntima. Porém, eu nunca o vi, até o devido momento não.
Minha casa é demasiadamente pequena — assim como seu dono. Um quarto de tamanho médio, no qual durmo todos os dias solitariamente; uma pequena sala, que possui uma velha poltrona, onde me sento e medito esporadicamente; um banheiro e uma copa. E é só isso. Só isso que tenho, meu estimado leitor.
A chuva torrencial que cai agora só faz aumentar essa situação macabra. Alguns raios surgem e cortam o céu, assim como as raízes de uma árvore cortam o solo no qual pende seu enrijecido tronco. O som da chuva me assusta um pouco. Os pingos parecem aumentar em frequência e espessura. O vento bate em minha janela. Estou sentado na poltrona velha já há algum bom tempo. Reflito sobre tudo isto, estático, imóvel, compenetrado, mumificado. Sinto isso que me ronda sondar ainda mais meu ser.
Assim como a chuva, esse sentimento ganha corpo e velocidade. Parece estar querendo me consumir por inteiro, como uma cobra engole sua presa sem parti-la. Agora ouço trovoadas incessantes. Um som longe mas que me afeta como a ópera que costumo ir semanalmente.
O que é isto que me ronda? É como uma indigestão que necessita voltar por onde entrou. Mas, diferentemente das outras indigestões, esta é a indigestão de sentimentos. Essa não há remédio que cure. Não posso me consultar com nenhum médico. Não há especialistas.
A chuva ainda não parou...
Já faz horas que estou aqui sem poder me mover. Será que ficarei assim para sempre? Definharei em meu leito, assim tão pacificamente? Morrer assim chega a ser uma grande ironia. Logo a morte, tão pesada e severa, sendo consumada desta maneira?
Aquilo que me ronda parou. Consegui sentir. Agora acredito vê-lo em minha frente. Franzo um pouco as sobrancelhas para ver melhor. Está turvo, esbranquiçado no meio com suas bordas mais escuras. Sim, tenho certeza de que era isso que estava me cercando o tempo todo. Mas por que esta sensação não cessou juntamente? Ainda continuo sufocado. Senti ela se aproximando, como que querendo me alcançar para me tocar.
Meus olhos, senti, lentamente se fechando. Os lábios paralisaram o hábito mecânico de respirar. Não consegui mais ver a claridade das velas e das lamparinas acesas. Agora, o que me atormentava parou ante a mim. Eu podia ver, mesmo com os olhos cerrados e adormecidos. — “Era você?”.
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O vigia
Short StoryEm um certo dia, algo senti. Algo obscuro e incerto, algo que se me apresentava somente como invisível. Aquilo que sentes mas não sabes o que é. Aquilo invisível aos olhos, mas perceptível ao coração. Observação: deixem comentários do que acharam. O...