3- A chegada de Poliana

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   Paulina segurava o telegrama anunciando a chegada de Poliana para aquele dia, 25 de junho, às quatro da tarde. Com expressão grave, foi até o quarto que mandara preparar para a sobrinha e passou a vistoriar tudo.
   A pequena cama, bem arrumada, duas cadeiras, um lavatório, um guarda-roupa sem espelho e uma mesinha, era tudo o que tinha nele. Nada de enfeites ou cortinas. Durante o dia, o sol o aquecia tanto que mais parecia um forno. As vidraças não tinham telas e estavam fechadas. Por isso, uma enorme mosca voava, batendo nas paredes, tentando sair. Paulina matou o inseto e, entreabrindo a janela, jogou-a fora. Mudou uma cadeira de lugar e saiu. Da porta da cozinha, advertiu Nancy:
   -- Há moscas no quarto da menina. Não quero as janelas abertas, antes que coloquem telas que encomendei, ouviu? Agora, apronte-se para ir à estação. Você vai com Timóteo, no carro pequeno. No telegrama está escrito que a menina é loura, usa vestido xadrez e chapéu de palha. É tudo, vá!
   -- Está bem. E a senhora?
   -- Não preciso ir - respondeu a patroa, entendendo a insinuação.
   Logo que ela se afastou, Nancy pôs o ferro de passar sobre um pano de pratos e resmungou:
   -- Como é que pode! Cabelos louros, vestido xadrez e chapéu de palha... É tudo o que sabe da pobre criança. E é sua única sobrinha, imaginem...
   Mais tarde, no carro, Nancy e Timóteo, filho do velho Tomás, seguiam para a estação. Diziam que Timóteo era o braço direito do pai e o esquerdo da senhora Paulina. Era moço de caráter e bom gênio. Apesar de estar na casa há pouco tempo, Nancy se dava bem com ele. Mas naquele dia, apesar da amizade que os ligava, Nancy permanecia calada, preocupada com a missão que lhe fora lhe destinada.
   O telegrama -- "cabelos louros, vestido xadrez e chapéu de palha" -- não lhe saía da cabeça, e ela se esforçava para imaginar como seria a menina.
   -- Espero que seja bem-educada e não jogue os talheres no chão nem bata as portas - disse Nancy a Timóteo, quando chegaram à estação.
   -- Pobres de nós se ela não for comportada - disse Timóteo, logo acrescentando: -- Depressa, Nancy! Lá vem o trem!
   -- Você não acha que ela devia ter vindo pessoalmente esperar a sobrinha, em vez de nos pedir isso? - perguntou Nancy, descendo do carro.
   Lá estava a menina sardenta e magrinha, olhando de um lado para outro, desamparada, loura e vestindo xadrez. Nancy tremeu de emoção e, refeita do choque, dirigiu -se a ela:
   -- É a menina Poliana?
Antes de responder, a garota pulou no pescoço, abraçando-a:
   -- Obrigada por ter vindo me esperar. Não imagina com o estou feliz por ter vindo!
   -- É mesmo? - Nancy estava admirada.
   -- Claro! - disse a menina. -- Durante a viagem fiquei imaginando como a senhora seria... - e olhava Nancy, curiosa: -- Vejo que não me enganei!
   Surpreendida com a explosão de Poliana, Nancy se sentiu aliviada ao ver que Timóteo se aproximava.
   -- Esse é o Timóteo - apresentou. -- Trouxe bagagem?
   -- Tenho uma mala novinha - respondeu Poliana. -- A "Auxiliadora Feminina" me deu um presente -- não foi gentil? Eu tenho na minha bolsa um papel que o senhor Gray me deu. Eu viajei com a família Gray - e tirou da bolsinha o conhecimento emitido pela estrada de ferro.
   Nancy olhou para Timóteo, de lado, era preciso tomar fôlego após aquela explicação, e todos se dirigiram para o carro. Poliana sentou- se entre os dois, deixando a mala na parte de trás, e voltou a fazer várias perguntas.
   -- Viva! Isto aqui é uma beleza. A casa é longe? Espero que sim, para andarmos bastante de carro. Se não for, não faz mal chegamos mais cedo. Que rua linda! Eu sabia que era assim... papai me contou.
   Poliana parecia tomar fôlego e Nancy olhou para ela e viu que seus lábios tremiam e os olhos estavam rasos  d'água. A emoção foi passageira e a menina continuou, agora mais tranqüila:
   -- Foi papai, sim. Ele nunca se esqueceu daqui. Ainda não expliquei porque estou com este vestido de xadrez vermelho em vez do preto. A senhora Gray disse que todos iriam estranhar. Acontece que na caixa de donativos da casa paroquial, além do veludo para fazer um casaco e que a mulher do dirigente da igreja achou que não era apropriado para mim, não havia outro pano preto. O veludo estava rasgado e cheio de manchas. Alguém da "Auxiliadora Feminina" quis comprar um vestido e um chapéu pretos para mim, mas os outros acharam que o dinheiro devia ser usado na compra de um tapete novo para a igreja. E disseram que  crianças não devem usar preto.
   Nancy gaguejou, enquanto Poliana parava para respirar.
   -- É... eu acho que... parece...
   -- Já vi que pensa com eu - continuou Poliana. -- De roupa preta ninguém pode se sentir alegre.
   -- Alegre? - quis saber Nancy, sem compreender.
   -- Isso mesmo. Papai não foi para o céu encontrar-se com mamãe e meus irmãozinhos? Antes de ir, ele me disse para ficar sempre alegre. Mas é difícil, sinto falta dele. Devia ter ficado comigo, já que não tenho mais nem mamãe nem meus irmãos. Bem, agora tenho a senhora, que é minha tia, e tudo será mais fácil. Estou contente por ter vindo.
   A simpatia de Nancy pela menina transformou-se em terror:
   -- Não! Você não entendeu! Não sou sua tia Paulina.
A menina empalideceu e, arregalando os olhos, disse:
   -- Não é a titia?
   -- Já disse que não. Não podia imaginar que ia nos confundir. Nem pareço com sua tia.
   Timóteo se divertia com a cena, piscando para Nancy.
   -- Quem é você? - perguntou Poliana.  -- Não se parece com as senhoras da "Auxiliadora".
   -- Sou Nancy, a empregada - respondeu, enquanto Timóteo soltava uma gargalhada. -- Só não lavo ou passo roupa pesada. O resto do serviço é comigo. Quem lava e passa é a senhora Durgin.
   -- Mas a tia Paulina existe? - A menina perguntou, ansiosa.
   -- Pode apostar que sim - respondeu Timóteo.
   -- Oh, então está tudo bem - disse Poliana -- Como é ela? Estou contente  por ela não ter vindo me buscar, porque assim tive você e ao chegar terei ela, duas valem mais que uma.
   Timóteo comentou com amabilidade, percebendo o constrangimento de Nancy:
   -- É uma boa mocinha. Por que não agradece a ela, Nancy?
   -- Estava distraída... pensando na senhora Paulina.
   -- Eu também - e Poliana parecia satisfeita. -- Quero conhecer minha tia. Pena que não soubesse disso há mais tempo. Papai falava de uma casa bonita, numa colina com uma linda vista.
   -- Olhe lá, é a casa! - exclamou Nancy, apontando para o imponente casarão que começava a aparecer, ao longe, com suas grandes janelas verdes.
   -- É linda! Nunca vi gramados e jardins tão bonitos. E a tia Paulina, Nancy, é muito rica, não é?
   -- Puxa, se é!...
   -- Estou tão contente. Ter dinheiro deve ser maravilhoso. Eu nunca conheci gente rica. Quer dizer, os White tinham alguma coisa, falavam dos tapetes  tomavam sorvetes aos domingos. Tem sorvetes aos domingos  na casa de tia Paulina?
   Nancy olhou para Timóteo e balançou a cabeça negativamente:
   -- Não, Poliana. Sua tia não gosta de sorvetes. Pelos menos, nunca vi sorvetes naquela casa.
   -- Que pena! - disse a menina. -- Bem, às vezes é bom não gostar de sorvetes. E não tomando sorvete ninguém tem dor de estômago. Mas tapetes ela tem, não?
   -- Claro que sim.
   -- Em todos os quartos?
   -- Em quase todos - respondeu Nancy,  pensando no feio e úmido quartinho do sótão.
   -- Isso é bom - disse Poliana, alegre. -- Gosto muito de tapetes. Lá em casa tínhamos dois, um manchado de tinta. A senhora White gostava também de quadros na parede... um com meninas no Jardim e outros com um leão e carneiros no pasto. Os bichos não estavam juntos, mas agora, não. Pelo menos na casa dos White. E você, Nancy, gosta de quadros na parede?
   -- Não sei...
   -- Eu gosto, só que lá em casa não havia nenhum. Entre os donativos que recebíamos, nunca apareciam quadros. Ou melhor, chegaram dois. Um, papai vendeu para comprar sapatos e o outro era tão velho e a moldura de tão estragada se espatifou de repente no chão. O vidro quebra com facilidade, não é? Eu caí no choro. Mas até que foi bom não ter todos esses enfeites lá em casa. Vou apreciá-los melhor aqui, na casa da tia Paulina. A gente sempre gosta mais das coisas que não tem. O mesmo aconteceu com as fitas coloridas que vieram na caixa de donativos, depois daquelas desbotadas que eu tinha visto antes. Meu Deus! - e Poliana exclamou, com entusiasmo: - Que casa mais linda!
   O carro tinha parado à entrada da mansão. E quanto Timóteo cuidava da mala, Nancy segredou-lhe ao ouvido.
   -- Não se fala mais em deixar o emprego, ouviu?
   -- Por nada deste mundo - disse ele, sorrindo. -- Isto aqui vai ficar melhor que cinema.
   -- Cinema? - Nancy parecia indignada. -- Vai ser muito difícil para ela conviver com a tia, isto sim! A menina precisa de amigos, que a ajudem. Eu prometo que serei o seu refúgio contra as tristezas e desenganos que a esperam.
   E acompanhou Poliana ao interior da casa.

  

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