- Julia, o que é isso aí que apareceu na novela? - indagou a mãe de repente
- Isso o que? - tirou os fones de ouvido pra poder responder
- Isso.. - continuou a mãe exasperada - quando a pessoa gosta de homem e mulher, que o povo chama de gilete..
- Ah.. quem é bissexual?
- Pois é, a mulher na novela, olha aí - diz a mãe num misto de riso e deboche
Fez-se silêncio com apenas o som da televisão na sala.
A palavra veio até a epiglote pronta pra sair, mas não saiu. Voltou a alojar-se no fundo do estômago. "Eu também sou bi, mãe".
Ela percebeu rápido que se ficasse calada, evitaria problemas. Observava a vida dos outros passarem como uma expectadora desinteressada. Homofobias eram proferidas no dia a dia. Quase tão banal quanto perguntar as horas, como falar sobre o tempo, como dar bom dia.
Era quase como levar um arranhão, mas com o tempo esse arranhão ia aumentando até se transformar em uma ferida, em um corte, em buraco. Que não parava de sangrar.
Engolia seco. É preciso.
Dizia a si mesma, "Se eu passar despercebida, ninguém vai me julgar, eu não vou machucar ninguém". machucava a si mesma. Era um machucado atrás do outro, cortes e mais cortes invisíveis, mas tava tudo bem não é?
Mais uma reunião de família, era sempre o mesmo
"E os namoradinhos?" - O tapinha do titio brincalhão
"E a faculdade, e os empregos?" - Perguntava aquela tia mais severa
"Olha, na sua idade eu já estava pronta pra começar minha família, já tinha conhecido o Nelson e a gente se casou assim que terminamos a faculdade" relembra outra tia
A mãe observava a sabatina familiar e achava tudo engraçado, quando se cansava de ver a filha pisando em ovos nas respostas só dizia "Calma gente, é tudo na hora certa, vocês vão ver, ela logo aparece aqui com o namoradinho, quando menos se esperar a gente vai estar no casamento e depois vamos ver os netinhos correndo pela casa né?"
Volta e meia alguém comentava "E o fulano heim que é gay? Hahaha!"
Alguém respondia "Mas pelo menos ele trabalha né, cada um sabe o que faz"
Outro assunto aparecia e deixavam o fulano gay em paz.
Apesar dos cortes e dos machucados, ela sentia que tinha toda uma vida represada dentro de si. Eram duas pessoas presas num corpo só. Uma era um farrapo humano, dependendo da aprovação de todos do seio familiar, no bairro, na rua, na igreja. E a outra? Bem, o que dizer da outra? Era uma pessoa totalmente diferente. Viva. Tinha mais e mais sede de viver, como se a vida fosse uma bebida. De ser vista, de voar, de sonhar, de fazer o que desse na telha. De amar, homem e mulher. De se perder em formas masculinas, femininas, de fazer amor, de gozar, de dar e receber prazer.
Só que lhe ensinaram que a segunda era errada
Por favor, me diga que vai ficar com a segunda e mandar a primeira embora
Não, a primeira é mais segura.
O que eu estou fazendo da minha vida?
- JULIA! - Berrou a mãe tirando seus fones de ouvido, ela levou um susto
- O que foi? Credo! Que susto!
- Me ajuda aqui com esses pratos
Foi ajudar a mãe a arrumar a mesa para o almoço de domingo, os parentes já estavam ao redor da mesa. Logo começou o falatório sem fim e desordenado.
- Ah, mas você viu lá a fulana?
- Tá crescendo rápido o garoto...
- Eu fui no ano passado com o Nelson..
- Tu tá assistindo a novela, Mirtes?
A mãe de repente se vira e comenta empolgada
- Nossa, que novela boa, a fulana tá tendo um caso com aquela mulher do escritório, depois engravidou de um cara, nossa, que escândalo!
- Pois é, eles mostram isso sem vergonha nenhuma!
- Como é mesmo o nome lá que chamam quem é gilete? É....
A palavra dessa vez saiu como a velocidade de um disparo de 38, não houve epiglote que barrasse
- O nome não é gilete, é bissexual, igual a mim. Também sou bissexual.
Houve um breve instante entre os pratos se espatifarem pelo chão e a expressão de incredulidade da família inteira.
Finalmente ela sorriu.