I. Qual é o nome do seu cachorro?

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Deveria existir um dispositivo para me ajudar a ouvir os pensamentos do meu cachorro. Eu faria o possível para ter um desses e descobrir o que se passava no mundo interior de Bilu. Eu sentia como se não o conhecesse mais. Ele não era mais o mesmo cachorro que eu adotei em uma ONG quando tinha sete anos.

Eu não aguentava mais vê-lo deitado no parapeito da janela do meu quarto todos os dias — com a cabeça em cima das patas dianteiras — observando a vista sem graça dos fundos de um prédio desgastado. Nunca entendia qual era a graça que via naquilo. Eu já tinha feito umas mil tentativas de tentar tirá-lo de lá, mas nenhuma funcionou de fato. Por mais que eu conseguisse afastá-lo da janela por alguns minutos, no fim do dia ele sempre voltava ao seu lugar habitual. Era inevitável e isso me deixava louca. 

Eu realizava o que podia para melhorar a situação. Tudo bem que meus dias estavam muito cheios, ainda mais com vestibular socando a porta da minha vida, mas eu estava pelo menos dando uma parte do meu tempo precioso para ele. E qual o agradecimento que eu recebia? Nada. Ele me ignorava. Eu me sentia como se estivesse sendo traída.

Suspirei e olhei para meu livro de História, me esforçando para finalizar a leitura do capítulo sobre a Segunda Guerra Mundial. As palavras reviravam-se na minha mente, sem conseguir manter o foco. Levei a caneta à boca e comecei a morder a ponta de plástico ao fitar meu cachorro.

Eu sentia falta de nossas brincadeiras. Quando a gente morava em uma casa no bairro mais distante do centro, as coisas eram bem diferentes. Tínhamos um jardim grande com um escorregador no qual eu brincava todos os dias. Bilu vivia correndo atrás de mim, querendo participar também. Nós pulávamos pela grama com o sol quente acima de nossas cabeças e ficávamos até os meus músculos doerem de tanto correr. Eu deitava no chão para recuperar minhas energias, entretanto, ele latia e subia em cima de mim para lamber minhas bochechas, um pedido para voltarmos a brincar. Suas lambidas faziam cócegas em mim e eu ficava rindo até desistir e levantar, sem ter outra escolha. Eu gostava daquilo, era nosso momento.

Mas tudo desandou depois que as minhas mães decidiram mudar para o apartamento. Eu tentei ao máximo fazê-las desistirem da ideia. Era uma tentativa idiota, elas nunca me ouviram e sempre argumentavam que era o certo a se fazer.

— O apartamento fica no centro da cidade perto do trabalho e da escola, Tália.

Eu não tive outra escolha além de aceitar. Mesmo depois de três meses desde a mudança, ainda era difícil me acostumar. Se eu me sentia assim, imagina como devia ser para Bilu?

Larguei a caneta e fui na sua direção para fazer carinho no seu corpo. Seu pelo era macio como algodão e eu poderia passar meus dedos nele o dia inteiro. Ele parecia ter sido pintado por um artista mesclando as tintas caramelo e branco. Quando o vi na ONG pela primeira vez, esse detalhe prendeu minha atenção. Bilu era o menor shih tzu com suas cores destacando-se dos demais. Eu não hesitei ao escolhê-lo. Ele era especial.

— O que acha de passearmos um pouco? Estamos enfurnados aqui por tempo demais, não acha?

Eu não conseguia mais prestar atenção no livro de História. Havia muita coisa passando pela minha cabeça. Eu precisava de um ar fresco e sentir o vento tocando minha pele. Bilu também queria e só foi falar a palavra passear que ele pulou da janela e começou a tentar subir em cima da minha perna.

Prendi meu cabelo castanho em um rabo de cavalo e segui para a entrada, com meu cachorro correndo no meu encalço.

Minhas mães estavam sentadas jogando baralho na mesa de jantar, concentradas demais para notar minha presença. Parei de andar e as encarei por alguns segundos. Elas amavam jogar cartas toda semana. Era a raiz sustentando seu relacionamento.

Qual é o nome do seu cachorro? [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora