A cidade estava escura e sinistra. O vapor dos bueiros se elevava misturando-se ao nevoeiro que encobria as ruas como um véu fantasmagórico. Essa era a região central de Curitiba no auge de seu inverno, com prédios velhos e abandonados entremeando aqueles mais novos. Um dos edifícios era um decadente motel com tábuas pregadas nas janelas e portas, pichações nas paredes e claramente um abrigo para dependentes químicos. Ali testemunhas diziam terem visto Julia recentemente, desaparecida havia algumas semanas.
Na frente daquele estabelecimento precário, sentado no interior do carro esfregando as mãos umas nas outras na tentativa de se esquentar, estava Paulo, um investigador veterano da polícia local. Já fazia algumas horas que ele estava ali de campana e nada havia acontecido, o que despertara a atenção, pois o lugar costumava ser movimentado por moradores de rua e viciados.
Paulo saiu do carro e caminhou até a porta de entrada do motel. Notou que as tábuas estavam soltas, e empurrou, fazendo com que ela caísse completamente. O som ecoou pelo saguão escuro como o tambor de uma banda marcial. Sacou sua pistola, puxou o cão, mas não a destravou; retirou a pequena lanterna do bolso interno de seu blazer e iluminou sua rota.
Seringas, cachimbos de crack, roupas velhas, pichações, garrafas quebradas, latas de cerveja eram algumas das coisas que constituíam os montes de lixo que se acumulavam pelos cantos. O som de goteiras, e o cheiro de fezes e urina que impregnavam o lugar completavam o cenário abandonado.
Passando pela recepção, caminhou até os elevadores em um corredor ao fundo. As portas estavam abertas, mas a cabine não estava ali. As cordas de aço guiaram sua atenção ao seu fundo, onde a cabine estava submersa em um alagamento que inundara o subsolo. A água era suja demais, mas conseguira ver o alçapão da cabine aberta. Isso deixou apenas uma alternativa, subir.
Subindo os degraus, notou algo passando por entre suas pernas. Um vulto negro. Assustado apontou a pistola e desarmara a trava de segurança. Permaneceu mirando o local onde o vulto se direcionou. Aguardou por alguns segundos, tenso, pronto para disparar contra qualquer coisa que se mexesse bruscamente.
Logo algo se revelou no alto da escadaria. Um gato, tão assustado quanto Paulo.
"Bicho maldito!" esbravejou em seus pensamentos, aliviado em não ter que atirar em alguém.
Ao terminar de subir as escadas, notou marcas de mãos impressas com sangue nas paredes.
"Sinais de luta." presumiu ao notar os padrões. Mas aquilo não dizia nada, podia ser um desentendimento entre viciados que acabou com alguém machucado. Mas a hipótese de que aquele era o sangue de Julia também não fora excluída.
O sangue estava escuro, seco. Olhou ao redor e notou pequenas rodelas rubras no chão também, seguindo a mesma direção das marcas na parede. Quem quer que fosse usou a parede como apoio para chegar ao seu destino.
Seguindo o trajeto daqueles sinais, a tensão subiu em seu peito. O som das goteiras parecia acompanhar seus batimentos cardíacos, os ruídos dos ratos correndo pelos rodapés a procura de comida incomodavam sua atenção. As portas dos quartos daquele andar pareciam estar bloqueadas havia tempo, pois a madeira já estava escura e embolorada.
Iluminando o fim do corredor, notou mais sangue. Dessa vez uma grande poça no chão e respingos nas paredes. Chegando até lá viu dois caminhos a serem seguidos, direita e esquerda. A decisão foi fácil de fazer, uma vez que a marca maior se estendia pelo chão à esquerda.
"A vítima caiu aqui, e foi arrastada para lá." Paulo seguiu o trajeto com sua lanterna, notando que o rastro ia até uma porta entreaberta, cujo interior era iluminado por uma tremulante luz alaranjada.
Cautelosamente caminhou até a porta, e com a mão que segurava a pistola a afastou. As dobradiças rangeram tortuosamente. O interior se revelou assim como a cena dantesca que ganhava destaque ao fundo daquele quarto.
Uma mulher nua havia sido pregada contra a parede com estacas de ferro em seus pulsos e tornozelos. Sua fronte estava ferida, e o sangue que fluiu manchou seu semblante e getojou pela extremidade do queixo. Frases obscuras foram escritas nas paredes com sangue, mas uma delas chamou a atenção do investigador, pois era a mesma que aparecera em uma série de outros assassinatos, cujo único link entre cada um deles era esse:
"O fogo purificador e destruidor."
"Gasolina!" concluíra Paulo, olhando em sua volta, preocupado com a presença das dezenas de velas que se amontoavam acesas pelos cantos do cômodo.
Caminhou até a vítima e notou que ainda respirava.
- Santo Deus! - rogou em voz alta, surpreso em ver tamanho milagre.
Tremulo tirou o celular do bolso e ligou para os paramédicos. Enquanto aguardava a chamada ser concluída, analisou o quarto, e percebeu uma câmera de computador apoiada sobre a porta filmando a mulher presa na parede.
Nesse momento o som de um curto circuito na parede onde a mulher estava chamou sua atenção. O corpo dela foi rapidamente tomado pelas chamas, e graças à adrenalina gerada pela dor ela acordou desesperada, gritando. Os berros ecoaram pelos corredores abandonados, deixando o lugar ainda mais aterrorizante.
Paulo deixou o celular cair de sua mão, estarrecido com a cena. Não sabia o que fazer, não havia cobertas ou extintores de incêndio próximos, tudo no prédio tinha sido roubado havia muitos anos, limitando as opções do aposentado investigador.
Estava sem alternativas, e acabou fazendo o que pareceu ser correto no momento. Apontou sua arma contra a cabeça da mulher, destravou, e fez dois disparos.
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O Acordo
Mystery / ThrillerPaulo está investigando uma série de assassinatos em Curitiba, mas sua aposentadoria chega cedo demais, sendo obrigado a se afastar do caso. Mas sua teimosia o leva seguir em diante, e descobre que a última vítima foi vista por moradores em um motel...