Nesta cidade...

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Ouve-se a respeito, em becos fétidos habitados por homens sem face e tavernas escuras, de uma terra sombria, a milhares de léguas de qualquer território conhecido. Alguns ousam dizer que a mesma nem em nosso plano terrestre se encontra, que ela reside entre o Jardim de Éden e o Inferno de Dante, afastada dos círculos de tortura por um véu tênue esbranquiçado. Outros afirmam que ela é apenas um reflexo distorcido da realidade.
"Ou é a própria, com a única diferença sendo que lá podemos ver o sacro, imutável; talvez o deus daquele lugar não tenha senso de humor"
Nessa terra, tudo seria cinzento.
Os olhos das pessoas miseráveis que ali vivem estão sempre apontados, vidrados e tristes, para o chão. Suas peles possuem uma coloração doentia, beirando o reptilianismo, e seus trapos de imundície nunca são substituídos: uma espécie de pele de cobra insistente, colada à pele.
Nada faz ninguém sorrir, pois nada tem brilho ou cor. Os prédios e casas e árvores e rios e mares e oceanos são tão pálidos quanto a névoa odiosa onipresente. As estrelas à noite se escondem sob Andrômeda, e o Sol parece cansado, inconsistente, não enérgico. Não se ouve o canto dos pássaros, ou a música do vento, ou o soar calmo das ondas.
O amor, tão absolutamente poderoso, é pó aqui.
E a empatia está enterrada.
Pois ninguém sequer olha para ninguém.
Mas o mais assombroso, o mais aterrorizante, são os fantasmas.
Fantasmas que possuem a aparência de grandes lençóis, segurando as mãos de cada indivíduo desta terra amaldiçoada. Sem nunca soltar, sempre apertados entre os nós dos dedos, sempre presentes. Fantasmas que não dizem nada, não possuem olhos ou ouvidos ou boca ou face ou membros (apesar de sentirem prazer nos sons dos passos lentos ecoando). Eles apenas seguram firmemente as mãos de seus donos, como crianças, e andam pela calçada, acompanhando o andar pesaroso com movimentos suaves de panos levados pela brisa.
Mas esses fantasmas têm nome.
Ah, sim, todos eles possuem nome.
Todos são chamados de passado.
Aquele ali, que segura na mão do homem negro, é um arrependimento de não cuidar da filha, e perdê-la para o mar.
O outro, segurando na mão do jovem, é o pensamento constante de alguém que já não é mais sua, que se foi.
O terceiro, segurando na mão da moça, é o divórcio. O outro é a derrota num torneio há muitos anos, um dobrando a esquina com seu dono é o fracasso de conseguir o diploma há quatorze meses. O daquela outra é o ex namorado, o daquele outro é sua mãe que o abandonou. Há pelo menos cinco remorsos na mesma avenida, sete traições, dez culpas. Todos alvos, todos flutuando tranquilamente, todos passados.
E essas pessoas se agarravam a seus passados com força, sem se soltar. Seguravam firmemente, quase manchando uma parte do lençol com o sangue de suas mãos por suas próprias unhas.
E ninguém olhava para a sua frente.
Nem uma espiada, nenhum levantar singelo de pálpebras sonolentas, nenhum questionamento do que será, nenhuma curiosidade do lugar a seu redor.
Elas tinham o poder de largar mão. Aquelas criaturas a seus lados não possuíam poder algum. Os lençóis seriam levados pelo vento, para o céu, e sumiriam, desapareciam.
Mas isso não acontecia. O céu era limpo, nenhum fantasma habitava o trono das nuvens.

Pois se isso acontecesse, a terra mudaria.
Se uma pessoa, dentre aquelas tantas, somente...
soltasse
Ela veria cor.
Ela veria brilho, e ouviria o mar e os pássaros, e a terra se alteraria por completo diante dos seus olhos, linda.
Simples.
E veria todos seus companheiros de viagem, todos seus irmão e irmãs, fazendo o inpensável. Ficaria perplexa, indignada, revoltosa.
"O que, em nome de Deus, vocês estão fazendo?"

Talvez alguém levantasse os olhos para responder, deixando o pano alvo ser levado como cinzas. Cinzas essas que aos poucos dariam lugar ao azul celeste.

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⏰ Última atualização: Mar 19, 2019 ⏰

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