Um louco poeta qualquer

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Desde moço fui assim, procurava explicações das coisas todas. Enchia papai de perguntas "Por que o céu é azul?" ele me achava um tanto curioso, tio Chico dizia que enxerido seria, e mamãe caía na gargalhada e gritava "Vá se fazer o primeiro homem formado da casa!"
  Morava quatro sob o mesmo teto; eu, mamãe, o pai e tio Chico. Pai e mãe eram doces de pessoas, parecia às vezes que sentiam fogo puro de amor ingênuo do avesso para fora, volta e meia eram pegos pelos olhares da casa; por beijos tão demorados e trocas de afeto intensas.
  Mamãe ansiava por minha formação profissional, queria que eu fosse doutor, mas eu tinha outro sonho que incendiava meu peito; a poesia, vivia a imaginar todos gritando por mim "Carlos poeta!", "Carlos escritor!" "Carlos é artista!". Em algumas noites escrevia versos soltos, outras versos infinitos, queria falar sobre o mundo, o amor, a guerra ou sobre a tristeza; essa que de alastrava em meu peito há tempos.
   Sempre fui bom aluno, as letras tinham um total domínio sobre mim, já pelos números chegara a sentir frieza, não compreendia as ciências exatas, mas era esforçado. A língua portuguesa me consumia e eu já sabia, aos treze anos, sentia a necessidade de escrever sobre a dor. A beira da morte de meu avô Sebastião escrevi uma poesia:

"Tem fé em Jesus Tião
   Trabalha como um cão
    O sol bate em teu rosto
     Tião não é monstro
      Sebastião é meu amigo
      Tem um monte de versos não-lidos
      Tião chora
       Aos pés de Seu Jorge
      Sua fé é forte
       Agora foi-se com a morte
      Como passarinho
       Voa para o céu Tião
        que lembro-me do teu rosto no caixão
       São Pedro já te abriu os portão... do céu"

    Aos dezoito, fui para o Rio de janeiro; a cidade mais linda que eu ja tinha visto, poderia escrever diversas estrofes para aquele lugar. Fui para estudar, seguir sonhos de mamãe, mas às vezes fingia para mim mesmo que estava numa longa viagem e escrevia versos imensos, por minutos poderia acreditar em mim; jovem paulista tolo, meus poemas começaram a soar mais melancólicos.
   Mamãe e papai sentiam minha falta, decidi contar-lhes toda a verdade que não conseguia segurar, mandei uma carta. Comecei com "Quero ser poeta!" logo apaguei, escrevi algumas vezes a mesma coisa; resultou em papéis rasgados. Naquela noite chorei como um cão maltratado, os sentimentos se contorciam.

   "Rio de Janeiro, 12 de maio de 2004.
  PARA Papai e Mamãe

   Com as janelas e cortinas (cor creme) abertas eu escrevo, com o céu negro ao fundo com nuvens claras, só possível ver com tudo apagado escrevo, com o coração fervendo e estômago cheio de comida do jantar escrevo. Pois sinto saudade do cheiro de casa.
                 COM MUITO AMOR, CARLOS"

     A primeira carta escrita como uma confissão arrancada de minhas entranhas. A primeira das muitas cartas sem retorno. Papai acreditava que eu tinha surtado. Mandava cartões postais com fotografias de Copacabana, sem retorno. As ligações deixaram de ser atendidas e eu nao sentia mais falta do cheiro de casa, me acostumei e deixei que o sentimento frio se hospedasse em mim.
    Um dia qualquer mamãe ligou, perguntou quando decidi ser poeta, "Vai se tornar um andarilho qualquer e louco, que fala de amor" suas palavras bombardeavam meus sentidos, as pernas fraquejavam. Não sabia quando tínhamos nos tornados tão secos, tão machucados e cansados; eu, pai e mãe.
    Aos vinte, voltei para São Paulo e larguei os estudos, seria poeta! Nunca esquecido pelos amantes da intensidade. Meus pais me olhavam com olhos caídos de decepção, eu gritava "Sou poeta!" repetia no espelho "Sou artista!" com a mão no peito, o pai não acreditava em mim, mamãe enchia-se de desgosto, e tio chico; o velho louco, me deu sua máquina de escrever, acrescentou que com ela eu poderia voar.
      Um fato que eu não esquecerei; Leonora, filha de Joselda, a moça que fazia tudo estremecer dentro de mim, a conheci quando voltei para São Paulo, Joselda era amiga de mamãe, e Leonora foi meu primeiro amor, a borda de seus lábios avermelhados me puxavam para si,  causando um estrondo em meu coração, como um ano novo fora de época. Mas Leonora foi-se junto com suas roupas escuras e objetos perdidos, vez ou outra se me concentrasse conseguia ouvir sua voz, ás vezes ela aparecia em sonhos, lembranças avulsas, nas cartas, fotografias de minha gaveta ou no cheiro forte de perfume caro de moça feita, mas nunca me esquecerei de seu rosto, disso tenho certeza.
   Aos vinte e dois, papai me arranjou um emprego em uma loja de embalagens, por força de hábito, dizia que era artista para os clientes.
    Mamãe faleceu, olhando em seus olhos no leito de morte, com os dedos sob sua pele gelada, desabei, percebi que não era para mim, desisti de ser poeta.
     voltei para o Rio de Janeiro, terminei os estudos e cheguei formado aos braços de papai; este que chorava e sorria e orgulhava-se, tio Chico foi neutro, me parabenizou e sorriu.
    Passei anos trabalhando, vivendo amores quaisquer, nenhuma nunca me olhou como Leonara, tinha um gosto tão doce como o dela ou mistérios tão deliciosos de desvendar. A poesia voltava às vezes, em lembranças ou déjá-vus antigos, outras nas noites como antigamente mas eram versos dispersos ou de dor, tornei-me um inútil. certa noite lembrei do Rio de Janeiro e escrevi a última ideia que saiu completa.

" O Morro e Icaro e Rio

É a última vez tento chegar perto de você
Sei que disse isso nas outras vezes
Mas agora é diferente
Meu professor de história disse que Ícaro tentou chegar perto do sol e morreu
Eu Ícaro da mitologia
Você é o sol
Morro por você
Morro quando chego perto de você
Morro é o meu coração grande, mas fraco
Morro é o mar e amar
O mar de morros; Rio de Janeiro
Oh cidade triste toda morrida
E se tu vira o sol do Rio
Eu sou morro de Cristo, o Redentor
Mas você é herege
E eu não passo de Ícaro qualquer"

   Mas agora é tarde demais para ser poeta, tarde demais para o amor.

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