E a noite estava tão escura quanto a sua vida, e naquela noite, em especial, não haviam estrelas no céu, nem lua que iluminasse seu caminho, e chovia, uma tempestade tão forte e com ventos tão violentos, porém aquilo era apenas uma leve brisa comparado ao furacão que era sobreviver, e o rapaz tinha no coração uma magoa tão escura quando aquela noite sem lua, afinal... a luta já estava perdida antes mesmo de começar.
Na rua deserta e fria, a tempestade impiedosa de verão maltratava do jovem descalço, que tremia a cada passo, e a cada passo dado, uma lagrima ardente escorria como brasa dos seus olhos escuros que misturavam as gotas gélidas da chuva. A parte mais aquecida do corpo do garoto era seu peitoral que ele abraçava, Lírio deixou tudo para traz quando fechou a porta da velha casa: a família conservadora, os pais cristãos, a bela irmã mais velha, e o maldoso irmão mais novo, deixou para trás, as tradições, a moral e os bons costumes, deixou também, dentro da velha casa a bíblia que o amaldiçoava, assim como o deus hipócrita a quem serviu durante toda a vida, e a fé que lhe traiu.
O jovem de apenas 17 seguia sem rumo pela rua deserta, sua respiração estava lenta, e uma fumaça saia da sua boca pelo frio, seu corpo interior tremia, e suas pernas já se recusavam a funcionar, ele estava cansado, estava perdido no próprio desespero, estava com medo ele não tinha para onde ir naquela noite sem lua, e o caminho de volta já não existia mais, foi expulso da velha casa como a roupa do corpo e com a mochila da escola.
Não sabia a quantas horas já estava andando descalço, depois do tapa desferido pelo próprio pai em seu rosto, saiu tão rápido que sequer calçou o chileno. Lírio precisava descansar, já era mais de meia noite, seu estômago começou a doer pela fome, e sua cabeça latejava, fora o nó em sua garganta, ele avistou um ponto de ônibus, era um lugar seco e iluminado, e para aquela noite, era a única solução, ele acelerou os passos, os pingos da chuva machucavam o corpo magro do rapaz, que agora mesmo com dor, corria arrastando as coisas consigo, por causa da tempestade, a rua alagou um pouco, era de noite, e não é se lírio olhasse onde pisava, e ao dar um passo em falso, um grito sai do fundo da sua garganta ao sentir cacos de vidro entrarem na carne do seu pé direito, era tudo que precisava naquele momento, mais lágrimas brotaram nos olhos cor de ébano, e seu soluçar alto se misturava a bela e gélida melodia da chuva, em uma triste canção.
Entre tanto, ao ouvir o som de uma sirene de polícia ele logo se escondeu atrás de um poste, esperando a viatura passar, com uma mão se apoiou no poste que estava ao seu lado, ergueu o pé ferido, ele não podia parar de andar, ele era a única luz naquela noite sem lua, ele tinha medo da dor que sentia, mas a vontade de sobreviver era maior que o medo, maior que a dor, ele puxa o caco de vidro, junto com um grito de dor, o sangue escorre e se mistura com a água, as lágrimas escorrem e se misturam com a chuva, ele coloca o pé no chão, e com dificuldade volta a caminhar, ele não podia parar, não agora, não ali.
Ao se aproximar do ponto, ele vê um homem que observava, não estava sujo, nem um mendigo, era um senhor de idade, uns 60 a 65 anos, estava com roupas simples, ate um pouco finas para aquele frio, Lírio se aproximou lentamente, tanto pela dor, tanto por medo do velho, que o olhava com pena.
- você é muito forte garoto - o idoso fala com pena
- queria ser mais - o menino se aproxima, coloca a mochila no banco e praticante se joga no mesmo
- o que uma criança como você faz fugindo de casa uma hora dessa?
- o que um velho como você faz perdido na sua uma hora dessas? O Alzheimer atacou e não sabe voltar para casa velho - o garoto diz grosso, afinal não esteja la de bom humor
- na verdade, estou procurando uma pessoa, não posso voltar sem ela- o velho tira um masso de cigarro do bolso e acende um, oferecendo ao jovem, que recusa com a cabeça
As lágrimas ainda escorriam dos seus olhos escuros, e seu corpo tremia pelo frio, estava encharcado, ele olha o ferimento do pé e se encolhe na própria dor e agonia, o velho ao seu lado, fuma todo o cigarro em apenas um trago, fato que não passou despedido pelo menino
- não esta com medo do exército rapaz? É perigoso andar na rua essas horas
- a prisão e melhor que o lugar da onde eu vim
- não teme nossos inimigos de outros países
- tenho mais medo dos inimigos que vivem debaixo do mesmo teto que eu vovo, não deveria fumar com essa idade
- pele menos engana o estômago
- você esta com fome?
- preciso achar essa pessoa, sem ela não posso voltar, estou procurando ela a umas semanas
- é sua neta que você esta procurando vovô?
- digamos que sim, mas e você criança, o que houve?
O menino olha para o céu escuro, e um novo no se faz em sua garganta ao se lembrar do momento que o pai o expulsara de casa, ao se lembrar também do choro da mãe ao repetir frase a "onde eu errei", do olhar de dó da irmã, do olhar de nojo do irmão, lírio já não tinha mais lagrimas para chorar, então apenas ficou ouvindo o som da chuva, seu pé, ardia como brasa e sua perna latejava de dor, porém, ele nada poderia fazer naquele momento, o menino abre a mochila, ele pega um pacote de bolachae entregando ao idoso, que olha espantado pelo bom gesto.
- nossa, obrigada guri, mas você também parece com fome, e não ignore a dor no seu pé - o idoso fala pegando o pacote e abrindo
- amanhã eu dou um jeito nisso e em todo o resto, ou pelo menos tento vovô
- é difícil tão guri - o velho sorri triste para a bolacha, oferecendo uma para o menino que pega uma
- o senhor não tem onde ficar? Está a quanto tempo procurando sua neta- apesar de tudo, lírio sentiu pena do idoso, ele não parecia má pessoa
- estou a duas semanas rodando esse reino atrás dessa pessoa, você também não tem para onde ir não é
- ate tenho, mas a pessoa não esta no reino hoje, ele foi para o Sul a negócios e volta amanha
- namorado?
- isso não é da sua conta vovô - tudo que o rapaz menos queria era velho julgado a sua sexualidade
- um rapaz perambulando por ai de madrugada, com o rosto inchado, apenas com a mochila da escola, não me parece um bandido, nem fugiu de casa, você saiu tão apressado que nem colocou um tênis, ou você foi expulso de casa, ou não soube fugir, aliás, foi um belo tapa que a pessoa te deu no rosto - o velho fala de forma calma e o menino olha boquiaberto para a inteligência do homem grisalho a sua frente
- eu... ele não é meu namorado... não mais, terminamos a uns meses, mas ainda somos amigos, os melhores - um sorriso triste brota dos lábios azulados pelo frio
- entendo guri, família é complicada, são se preocupe garoto, você é novo e sua família são aqueles que te querem bem, porque na hora do aperto o sangue que corre nas suas veias não significa nada
- para um vovô perdido e sem teto, você é bem legal, qual seu nome?
- Edgard, e você é?
- Lírio
- nome bonito, é uma bela flor
- obrigada vovó, o senhor não esta meio velho para procurar as pessoas assim?
- saiba que eu ainda tenho 62 anos, mas quem esta na *flor*da idade é você
- nossa trocadilho com flor e meu nome, bem criativo vovó- o garoto responde com sarcasmo e o velho ri pela resposta mal humorada
- definitivamente você é gay guri, agora é melhor você fazer um curativo nesse pé ai
- tem um band aid ai?
- tenho nem comida vou ter band aid?
- você tinha cigarro
- é pôr que cigarro é mais importante que comida, você esta com outra blusa por baixo dessa?
- meu uniforme
- tira essa e eu faço um curativo com o pano
- então ta - o rapaz tira a blusa de frio inchada, ele ainda tremia de frio
O idoso rasgou a blusa e fez um curativo, Lírio achou na hora que aquele cara devia ser medico ou coisa do tipo, eles conversaram ate a madrugada, e em nenhum momento a chuva parou, o cansaço chegou ao mais novo, coisa que não foi despercebida para o idoso
- se eu dormir você não vai roubar minha mochila ne?
- a é, eu quero muito uma calculadora e sua apostila de física, me poupe guri
- o que você vai fazer quando amanhecer o dia vovó?
- procurar a pessoa que eu te falei, e você
- tentar ficar vivo ate o dia depois do amanhã
- boa escolha.
O garoto então, deita em cima do banco, seu corpo tremia, seu pé ainda que doesse bem menos, ainda doía, e mesmo na dúvida se deus ou não, ele faz uma oração antes de adormecer, e uma última lágrima sai dos olhos já fechados.
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o Jardim real
RomanceVivemos todos em um grande e cruel Jardim, ao nosso lado, flores tão perfumadas exalam um perfume mortal, e ao cair da noite, até a mais bela rosa mostra seus espinhos. Mas, e se você fosse uma erva daninha entre as mais belas flores? Um jovem ao se...