Capítulo 1

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Sorrindo, olhou o garoto a admirá-lo. Era negro, de cabelos crespos e pernas esmirradas. O lugar era como qualquer outro. Às vezes as construções eram monumentais, noutras épocas, apenas pequenas choupanas. Para Ele, todas iguais. Todas frágeis brinquedos para os seres que outrora caminharam no mundo.


Sua corda estava no chão, o nó desfeito. O garoto continuava com os olhos castanhos arregalados e o queixo caído como um idiota. Mas não era. Idiotas não resolvem o nó, pensou.Não era a primeira criança que desvendara o enigma. Como todas as outras, certamente tinha uma inteligência aguçada. Crianças eram seus segundos mestres preferidos. Perdiam, apenas, para os idosos.


"Garoto, belo garoto, você sabe o que sou? A menos que todo sonho tenha desaparecido deste mundo, histórias ainda devem ser cantadas sobre a minha espécie".


O menino continuou imóvel, admirando a belíssima figura a sua frente. Sua pele era marrom e o corpo musculoso. A voz era diferente de tudo o que ouvira. Desde pequeno era obcecado por línguas. Sozinho, desvendara o inglês que ouvia no rádio e compreendera o francês de um velho livro da biblioteca escolar. Mesmo o nó que havia desfeito não passava da linguagem matemática oculta por voltas elegantes. Oculta. Percebeu rapidamente que havia algo escondido no português que Ele falava. Uma língua escondida dentro de uma língua. Uma voz secreta. Voz de fogo. Ele nasceu no fogo, soube sem dúvida alguma, como sempre soube que os peixes nasciam na água.


"Não seja tímido. Se os homens esqueceram o significado da esperança, eu te ensinarei."


Os olhos da criatura faiscaram e o coração do menino fez o mesmo.


"Sou seu servo por quatro vezes" disse, e era verdade. Como os desejos, havia também quatro regras que Sua espécie precisava seguir e informar a quantidade de serviços era a primeira.


"Será possível que não tem o dom da fala? Que tal corrigirmos isso com meu primeiro serviço?"E então, diante da trágica possibilidade de ter um desejo perdido, a inércia cessou.


"A... achava que eram três desejos"

O gênio gargalhou.

"Este equívoco não é de hoje, criança. Sempre desconfiei que sua gente era melhor contando histórias do que contando números. São quatro desejos e enquanto você solicitá-los, eu os atenderei."


"Nossa, é tanta coisa, eu nem sei..."


"Se apresse, criança! Não pense demais. Vocês pensam demais neste mundo. Seu verdadeiro desejo está no coração, não na cabeça", aconselhou.


"Se eu pedir para ser rico?", perguntou afoito.


O gênio sorriu.


"Transformei o homem mais pobre de Ur no homem mais rico de toda Mesopotâmia. Basta desejar, criança."


O menino começou a falar, mas parou. Ao seu redor, os amigos brincavam de futebol, uma idosa caminhava para frente tanto quanto suas pernas aguentavam e Jorge alto, que na verdade era baixo, mexia nas plantações de cebola. Jorge baixo, que na verdade era alto, não estava em lugar nenhum para ser visto.


"Ninguém está te enxergando?"


"Só quem resolveu o nó pode me ver, criança. Vamos, garoto. Cada segundo que desperdiça é um infinito distante de seus sonhos. Riqueza, então?"


O guri olhou para seu próprio barraco.


"Minha mãe está doente", disse. "Você pode ajudá-la?"


"Enquanto estiverem no reino dos vivos, posso curar qualquer um. Quando passam para o outro lado, está fora de minha competência", disse o gênio e era verdade, porque era uma das quatro regras.


"Ela ainda está viva!", respondeu contente. "Está, sim senhor. Pode curá-la?"


"É este seu desejo?"


"Sim!"


O gênio estalou os dedos. Se entediou quando o menino correu para casa e o abandonou ali. Mas foi por pouco tempo.


"Ela está melhor, senhor, está sim!"


O gênio riu um trovão.


"Você deseja e eu sirvo, jovem."


As crianças se acostumam com tudo tão rápido. Se entregam tão verdadeira e corajosamente. São o contrário dos idosos, sempre cuidadosos. Por isso amava servir ambos. Era um senhor de extremos.


"Seu próximo desejo? Quer sua riqueza?"


O garoto pensou por um instante.


"Não. Quero ajudar os outros", disse. "Quero ser um super-herói".


"Um super-herói?", perguntou confuso.


O garoto balançou a cabeça.


"Quero ser como o super-homem!", disse decidido.


Os olhos Dele faiscaram, vasculhando o infinito. Então, sorriu o maior e mais perverso sorriso de todos.


"Diga seu desejo novamente, pequeno senhor."


"Quero ser como o super-homem!", repetiu. E, rindo uma tempestade, o gênio obedeceu.Foi uma das crianças que apontou para o menino quando ele começou a levitar. Jorge alto soltou o saco de cebolas da mão e um palavrão da boca. A senhora acelerou o passo.Todos ouviram os ossos estalando quando as juntas de seu corpo se torceram.Joelhos, cotovelos, pulsos, tornozelos, em um segundo estavam ao contrário. A espinha produziu um som grotesco quando as costas se quebraram e sua nuca tocou os pés. Possuído pela dor, o garoto gritou. Mas era apenas a primeira dobra.


E muitas estavam por vir.


Quase todos correram para suas casas. As crianças rezaram. Pediram para Deus que, fosse o que tivesse pegado o menino, não os pegasse também. Jorge alto fez o mesmo. E talvez tenha funcionado, porque o gênio nunca cruzou seus caminhos.

Crônicas do Servo que habita o nó e daqueles que o desvencilhamWhere stories live. Discover now