As cinzas queimavam a papelada amarela que usava como charuto. O gordo Adalto dizia que meu prazo estava se esgotando e que precisava de novas histórias. Ele sugava a última xícara de café, com o indicador erguido e dizia que a história não precisava ser necessariamente boa. Apenas uma fina linha de verdade e o resto estava por conta do imaginário das pessoas.
- Tente algo policialesco. Assassinatos em série. Roubos. Sequestro. Estude estatísticas e faça alguma ligação absurda dos hobbies com os crimes - mesmo dando as costas, ele continuava a falar - preciso disso para a próxima semana, às cinco da manhã do domingo.
Você aprende desde o começo que as pessoas não querem a verdade, e sim algo que as entretenha. João dizia para conhecermos a verdade e a verdade nos libertará. Mas quem disse que queremos, exatamente, isso?
Então você aprende a criar narrativas. Deixar a população crente de que ela não é culpada. Lembro de censurarem um jogo de luta, por possuir violência demais. Como se ela pudesse ser medida.
Pegue uma linha mínima de verdade e, em cima disso, construa narrativas. Apresente estatísticas. Use palavras chaves como, "levantamento de dados", "pesquisas em instituições de ciência americanas ou londrinas". Faça parecer que a consequência exista.
Nesse ponto, você tem a atenção dos leitores e é quando você pode foder com a cabeça deles. Fale sobre videogames. Houve uma época em que ligavam jogos de RPG com rituais satânicos. Encontre o mais imponderável para justificar a verdade e crie um pânico nas franquias de jogos.
Tenho seis dias para descobrir uma nova maneira de gritar para o mundo como brincadeiras infantis são nocivas à saúde. Preciso contar que o esconde-esconde é um ritual de tribos antigas para omissão de vidas em troca de benção dos deuses. Preciso de um caso, um crime, uma história.
Preciso disso tudo antes do meu chefe me esporrar, queimar o charuto na minha mesa e dizer para cair fora da redação. Que ele faça depois da carta do meu despejo ser devidamente paga.
O Sr. Rinegan diz que tenho quatro dias para sair do apartamento. Peço sete dias. Ele diz cinco e eu respondo que, em seis dias, ele teria a porra do envelope com o dinheiro dos quatro meses na porta do seu apartamento. Ele me manda a merda, bate a porta e grita do lado de dentro, seis dias.
Nas escrituras antigas, a nossa existência, e tudo aquilo que conhecemos, foi criado em seis dias. Luz, escuridão, ordem e caos. O horizonte onde você enxerga. Toda a fauna extinta e todas as florestas desmatadas foram criadas em seis dias, tendo o sétimo como sabático, voltado para o descanso e reflexão. Sábado.
Tenho seis dias para criar algo. Caos, extinção e desmatamento fora do nosso controle.
Um velho espanca um homem com aparentemente a metade da sua idade. Ele o agarra pelo colarinho e desfere seguidos socos na altura do ouvido. É diferente você assistir a uma luta na televisão e nos ringues e uma luta na vida real. Aqui as batidas são ocas, atrapalhadas e costumam machucar tanto quem apanha quanto quem bate.
Não é da minha conta, mas sigo em direção aos dois. Alguma dormência pode surgir no braço esquerdo do velho. Infarto agudo do miocárdio e ele morrerá mesmo em vantagem. Ao me aproximar, o rapaz que apanhava estende a mão em minha direção, como se mandasse eu parar.
Não entendo o porquê, mas obedeço. O velho joga ele no chão, recolhe sua bengala e caminha com uma sobriedade que gostaria de ter na minha idade. Me aproximo do rapaz e ele limpa o sangue com a manga da sua camisa. Suas roupas pareciam impecáveis antes de ter tomado a maior surra que vi na vida. Pergunto se posso ajudar chamando um resgate. Ele apenas ri e confere se todos os dentes estão na boca.
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Olhos de Panda
RomanceUm romance com histórias de tirar o fôlego, os incisivos, os molares, cortando o supercílio, deslocando o nariz e preenchendo a nossa cara com duas marcas grandes e redondas que são os olhos de panda.