O Buda está nos pequenos gestos

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Escrito por Mario Marcio Felix

Instagram: @felixliteratura
Twitter: @mmfelix
Podcast: UBook Cast

Dia após dia o rádio me desperta com a mesma música, parece um mantra. Maldita seja a voz de Chico Buarque e seu "Cotidiano". Tá, não tão maldita, eu gosto do Chico. Apesar de que, fazendo um pequeno retrospecto, tem gente que desgostou dele por ter mau-gosto político.

É, difícil, mas esses devaneios me acertam em cheio enquanto estou semidesperto. Estou sentado como um Buda no centro da cama. Iluminação? Nada. Batendo cabeça.

De rente, a realidade me nocauteia e ela é mais forte que o finado Muhammad Ali. Coitado, Parkinson. Doenças são evolutivamente cruéis, mas Parkinson e Alzheimer me tocam em profundidade. É, acompanhei essa miséria de perto. Meu...

Acorda, anda!

Devaneei de novo. Mais uma vez perdi meia hora, como um Buda, semivegetado entre o palácio de Morfeus e o Sanatório do Cão. E olha que nem o cão tem culpa.

Levanta. Cambaleia. Banheiro.

Leva a escova de dentes para o box, é uma tentativa vã de me enganar, achar que dá para compensar o tempo perdido. Mesmo quente, o chuveiro não é tão eficiente assim. Continuo nesse entre-mundos, nesse véu, enquanto me seco e me arrumo.

Buda. Sinto o peso de mil reencarnações até que o primeiro gole de café jogue meus receptores cerebrais em uma montanha-russa de concentração e desconcentração. O pior, hoje nem é dia de falar sobre literatura.

Saio de casa em um passo firme, apesar do sobrepeso que me arde as canelas, ainda tenho certa agilidade da época de moleque. Ainda dá tempo de passar na loja de conveniência do posto, comprar café e jornal. É fato, preciso de mais um gole. Preciso ficar trincado para poder aturar aquelas crianças e aquela escola. Futuro da Nação! Pfff. A quem estamos enganando? Já estive em lugares melhores, com gente melhor.

Refoco na realidade bem a tempo de evitar trombar com seu Antônio. Esse coroa que toma conta da loja é bacana. Sofrido na vida, coitado. Administrador, trabalhou em banco público, entrou na furada da demissão voluntária, ganhou algum dinheiro, mas ele acabou. Não conseguiu recolocação, muito velho, o mercado não absorveu. Passou um tempo na informalidade, ao menos conseguiu trabalhar aqui no posto, mesmo se aposentando.

Aposentadoria? Não tem como.

Esqueço novamente esses devaneios das mil encarnações para correr para a escola. Tento, não dá, não consigo parar de pensar nessas pequenas agruras da vida e de como ela passa, passa sempre igual, mas passa.

Escola de classe média em área nobre de classe emergente. Um primor! Mensalidade de mais de um salário mínimo e alunos que não valem o dízimo. Futuro do país. Mais um dia de massacre. Mais uma oportunidade de dar bom dia ao Vietnã.

Exaurido é como me sinto. Meus alunos e meus Antônios me dão a dádiva de sofrer. Às vezes penso ser besteira me importar com o sofrimento alheio. A benção da ignorância há tempos deixou de me sorrir.

Ultimamente me agonia ver que as pessoas só observam a vida passar, entrincheiradas em seus umbigos e me pergunto se, ao estar como um Buda sonolento na cama, para qual dos dois lados estou realmente desperto.

Chego em casa e sempre é o de sempre: banho, janta, correções até a madrugada. Pseudo dormir. Levantar. Buda. Banho. Café. Posto. Antônio. Alunos. Semana vai, semana vem com seu mês a mês. É quase ano.

Desta vez ao chegar ao posto, vejo Antônio sendo amparado por dois rapazes com cara de calouros universitários. Foi uma briga daquelas. Homofobia, que retrógrado. Pensamos viver em uma época mais esclarecida. Pensamos, fundamentalmente, só pensamos.

Ajudo os rapazes a cuidar do coroa. Cara forte. Mas o que me intriga é um cara, do século passado, com uma criação ortodoxa, se colocar na frente de dois brutamontes para proteger um casal gay. Não que o fato dos meninos se amarem me cause escândalo. Que nada. O que me escandaliza e surpreende é alguém ter se desentrincheirado por outro.

O soco de realidade veio com um trecho de Lenine.

- Professor, "todo mundo tem direito à vida, todo mundo tem direito igual".

Um brinde, por mais Antônios!

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⏰ Última atualização: Apr 24, 2019 ⏰

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