Leonardo, atrasado, abriu o portão de casa e viu o seu ônibus passar. Então atravessou a rua irritado dizendo para si mesmo que o dia não havia começado bem. Caminhava já pensando em qual desculpa daria ao chefe para mais um atraso. Ao chegar na parada, teve sua atenção chamada por um velho senhor que tomava chimarrão na varanda de casa:
- Bom dia, Leonardo, como andam as coisas?
- Bom dia, Seu João, tirando a correria e a falta de dinheiro, tá tudo indo – respondeu após um profundo suspiro. - E o senhor, como está? - perguntou sem estar interessado na resposta.
- Olha, meu filho, ando muito cansado, e para ajudar estou...
Seu João prosseguiu com lamentações sobre dores aqui, dores lá, dores não sei onde, sem que seu interlocutor pudesse entender com clareza o que dizia. É que o intenso vai e vem de carros na rua no começo da manhã, somado ao fato de que aquele velho senhor falava num tom de voz muito baixo, dificultava muito a compreensão.
- Pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta – dizia Leonardo após perceber uma pausa em sua fala, sem saber se continuava falando da sua saúde debilitada, do aumento do preço das coisas no supermercado, ou da previsão do tempo para os próximos dias.
Parecia que quanto mais Leonardo torcia para o ônibus chegar logo, mais ele demorava. Mal podia esperar para embarcar, colocar seus fones de ouvido e se isolar em seu mundo particular. Dividiria aquela hora de viagem planejando tudo que tinha para resolver no dia, e a procura de ânimo para encarrar mais uma jornada num trabalho que não gostava.
No entanto, o velho não parava de falar, o ônibus não vinha, e ele se via obrigado a ficar repetindo, de forma automática, entre uma pausa e outra, apenas para não deixa-lo sem resposta: "pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta".
No dia seguinte, Leonardo saiu de casa mais cedo para não perder seu ônibus, e assim se livrar do esporro do chefe. No entanto, não conseguiu escapar de Seu João que estava lá, na varanda de sua casa, com a cuia de chimarrão em punho, e pronto para atualizá-lo de tudo que lhe tinha acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Como se tivesse havido alguma grande novidade!
E mais uma vez, Leonardo, sem entender quase nada do que o velho senhor dizia, e com o pensamento longe organizando todas correrias daquele dia, apenas repetia quando notava uma brecha em sua fala: "pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta". Fez aquilo até que a chegada de seu coletivo, praticamente lotado, deu fim naquele martírio matinal.
Então a partir de uma certa época, Leonardo passou a embarcar num outro ponto de ônibus, que o fazia caminhar uma distância de cinco quadras a mais do que o necessário, no sentido oposto à parada que ficava na frente da casa de Seu João.
Fizera esta mudança para não ter mais que iniciar o dia enfrentando aquela situação chata e constrangedora de tentar compreender as lamentações daquele triste senhor, para depois do término de cada uma delas ficar repetindo aquela afirmação pronunciada de forma automática, apenas para não deixa-lo falando sozinho. Afirmação que, nem mesmo para ele, servia de estímulo para encarar as atribuições de seu dia: "pois é, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta".
Em uma certa manhã, Leonardo saiu de casa atrasado como em ocasiões anteriores e, ao fechar o portão, viu no final da rua o seu ônibus vindo. Então correu até o ponto mais próximo, que ficava na frente da casa de Seu João, e estranhou o fato de ele não estar na varanda como era de costume.
Já na manhã seguinte, de uma sexta-feira, Leonardo saiu de casa na companhia de sua mãe que tinha uma consulta médica no centro da cidade. E como não quis fazê-la caminhar sem necessidade, se dirigiram até o ponto na frente da casa de Seu João. Então mais uma vez a surpresa: o amargurado senhor não estava na varanda. "Deve ter ido passar uns dias na casa de um familiar no interior, ao invés de ficar aqui enchendo a paciência da vizinhança com seus problemas de gente velha" – deduziu mediante nova ausência.
Já no sábado à tarde, portanto, findada aquela semana de correria, Leonardo foi até o armazém próximo buscar umas cervejas para beber com dois amigos, que estavam em sua casa para assistir com ele um jogo de futebol na TV. Então o comerciante, que sabia de tudo que acontecia nas redondezas, perguntou, enquanto pegava as garrafas no refrigerador:
- Ficou sabendo o que Seu João fez?
- Não, Seu Rubens. Não fiquei sabendo de nada. Já faz tempo que não falo com ele. O que houve?
- Ele se enforcou na garagem de casa na tarde da última quarta-feira.
- Como é que é, Seu Rubens? – perguntou Leonardo, estarrecido.
- É triste, meu jovem, mas é verdade. Um vizinho estranhou a falta de movimento na casa e resolveu chamar pra ver se tava tudo bem. Como ninguém apareceu, decidiu entrar no pátio. E quando chegou nos fundos, deu de cara com ele pendurado numa corda.
Em seguida, o comerciante alcançou as cervejas e o troco a Leonardo, que foi para casa cabisbaixo experimentando um sentimento de culpa: "vai que no dia que decidiu se matar não encontrou alguém que lhe dissesse para não se entregar, seguir na luta".
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NA CORRERIA DO DIA A DIA (CONTO)
Short StoryLeonardo era um jovem que tinha uma rotina bem agitada, sempre com a cabeça ocupada com os compromissos que teria naquele dia. Portanto, não tinha tempo para perder colocando conversa fora com pessoas que não lhe interessavam. Já Seu João era um vel...