Toc, toc, ele bateu à porta levemente, mas logo bateu novamente com mais afinco, nada, bateu novamente, nada. Virou as costas para a porta e olhou volta naquela paisagem sem graça. Craq, fez-se o barulho da maceta virando-se, um rangido franco e enfim ali estava o anfitrião misterioso. Um alta silhueta negra, com os braços largos e grossos, o peitoral estufado e uma expressão fria na face bruta.
- Sim? – Disse o homem numa voz rouca e grave.
- Boa tarde meu jovem, ando nesta terra a muito, cansado e exausto não acho mais forças para prosseguir. Logo vi tua simpática cabana e pensei em virtude desta linda arquitetura, que poderia haver ali um homem de bom gosto e boa índole, então peço-lhe apenas um lugar em frente à lareira e um copo d'água se possível.
Porém o homem ao pé da porta não disse nada além de um olhar sombrio. Em seu intimo, pois surgiu a mesma questão a sombrear as almas dos homens, a sua natureza, aquela que o ser em si, como celebres parágrafos em livros filosóficos. Por fim o olhar perdurava o momento estranho, não era um simples pedido por ajuda, mas algo a mais, algo que o velho escondia por baixo daquele ser para si, uma figura escura em um sobretudo, no qual espreitava-se pelas casas dos homens simplórios e os castigava-os por diversão. Seria essa a ideia do anfitrião? Não era fácil julgar outro homem por sua aparência, mas a tal cisma era maior que o desejo de ajudar o próximo, e mesmo ama-lo, que deixou-se então levar-se neste reciproco ressentimento, sobre a desconfiança perdida no fundo do olhar, sobre a falsidade escondida em jogos de linguagens em claro adrede e sobrepensados.
- De onde vem forasteiro? Parece o senhor vir de uma ilha no Caribe ou de uma província sem dono. Não querendo insulta-lo é claro, mas o que faz aqui tão longe de casa? – perguntou o anfitrião com tom analítico, escolhendo cada palavra minuciosamente, como se escolhendo cada uma enquanto escreve um poema.
- Apenas ando meu jovem, ando em busca de uma resposta ou uma pergunta, um motivo para fugir da rotineira presença do passado de um velho, não que tenha a vergonha deste, é que não disponho mais da habilidade da metamorfose emocional como um jovem tem como qualidade é claro – disse o forasteiro.
E mesmo o tom do velho sendo aquele mesmo no qual se apresentara. Passava na cabeça do velho forasteiro uma pergunta inquietante, que por fim permitia moldar a maneira que escolhia as palavras: " Olhe só Zelda, não acha isso estranho? Um homem com tal aspecto, vivendo a sós numa floresta estranhamente calada em pleno sol da tardinha? Até mesmo Ernesto acharia isso estranho, como da vez em que descobriu aquela volumosa edição rara de Shopenhauer largada em um banco de praça, seria tolo se chegasse a pensar que o deixariam ali aos bêbados sem alguma intenção maligna, não acha querida?"
E assim o velho falava consigo mesmo, ou de acordo com sua percepção as vezes inconsciente, com a adorada esposa que a muito se fora desta mundo, e agora como a lembrança que a prende ao mundo dos vivos, o citar de seu nome e o pensamento recorrente e descontrolado do amado para com ela, um profundo e meditante pensamento, no qual saía da mente do velho como uma imagem de sua amada naquele seu lindo vertido azul. Queria ele pois esquece-la para sempre, mas como poderia se esta lhe incomodava os sonhos, lhe falava aos ouvidos quando ficava distraído ao olhar o nada, lhe torturava quando este a via em um canto escuro em algumas noites e trazia-lhe a saudade escaldante sobre o peito? Era então uma tarefa impossível, e o que poderia fazer a não ser conviver com essa presença? Talvez por isso batizou a mula de Zeldina, lembrando-a, porque não parava nem por um mero instante de pensar nela, uma bela dama torturando a visão com sua beleza enquanto em vida, e agora torturando em morte com a lembrança de sua bela singeleza.
Ambos trocaram olhares desconfiados, de chofre um pensava em lhe dar as costas e o outro pensava em fazer o mesmo. Esse pensamento conjunto, fazia parte de um acaso incomum, uma fenda na realidade a qual juntava duas consciências como um buraco de minhoca no cosmo da personalidade. Isso dava-se pela semelhança entre ambos os homens, a maneira como buscavam viver as incessantes intrigas no presente, que assim os levavam a uma certa dor, daí olhavam para aquele cosmo obscuro no intimo e por fim, assumiam o papel de donos de seu próprio espaço tempo, vasculhando o passado distorcido, entre plantações de trigo e campos onde já não haviam terras férteis para planta-los, uma tenra e vetusta viajem no subconsciente.
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Um véu sobre o vazio
RandomTodo homem anseia a liberdade, mesmo aos oito ou onze anos de idade, a liberdade já é superficialmente desejada, porém de forma trivial onde a idade não permite um conhecimento mais profundo do próprio conceito. E na questão que leva o homem à busc...