Andando em direção ao rio, o mato que há muito não era aparado roçava seus calcanhares desnudos, mas a moça ignorava o incômodo.
Os mosquitos pregavam em seu corpo e faziam marcas em sua pele dourada, como se estivesse dias sem banho, no entanto, nada mais importava que o turbilhão de pensamentos que passava em sua cabeça. Seus pés corriam atrapalhadamente e de seus olhos corria um rio de lágrimas."Por que de todos homens tinha que me casar com aquele?", pensava. " Por que não posso eu mesma decidir meu futuro?" Essas e outras perguntas a deixavam triste e enraivecida simultaneamente. Estava cansada dos pais vê-la como um objeto a ser vendido, do controle que tinham sobre a sua vida. E se dirigia ao rio a fim de acabar de uma vez por todas com tudo isso.
Esperava não encontrar ninguém lá para lhe impedir, mas a julgar pelo horário, - o sol já havia se deitado por detrás das montanhas - dificilmente encontraria alguém. A própria Maria não deveria estar ali, se seu pai descobrisse que tinha saído de seu quarto as escondidas e pior ainda, vagueava no meio do mato desacompanhada, dava para deixar a imaginação fluir e prever o que ele era capaz de fazer. E não era por isso mesmo que ela o fazia?
Ela segue com sua caminhada sem nunca titubear e pensar em voltar. Ao contrário de todo o resto da sua vida, hoje estava confiante. O mato seco estralava sob seus pés, os grilos criquilavam, era possível escutar o coaxar dos sapos e lá no fundo o rio correndo.
"Maria da Conceição, o que fazes com essas vestes vulgares?" Disse em um dia que ela levantou um pouco a barra do vestido devido ao calor. "Não tem permissão para acompanhar as lavadeiras até o rio, sabes que o Cabeça de cuia vaga por lá atrás de Marias virgens."
"Para que esse tanto de maquiagem, decerto trabalhas em um bordel." Esse último insulto seguido de um tapa na face.Estava farta das crenças de seus pais. Podia até respeitar, entretanto, isso não queria dizer que compartilhava delas. Podia até ir às missas duas vezes durante a semana, mas achava a igreja uma forma de controle, manipulação. Quanto ao "monstro" que habita o rio, se ele realmente matou a mãe dele, hoje, ela não consegue julgá-lo; Suas lágrimas clamam tanto por liberdade, que nesse momento de instabilidade e esgotamento emocional seria sim capaz de matar o próprio pai.
Quando encostou os delicados pés na água gélida, nem ao menos se arrepiou, seu corpo estava anestesiado. Tremia, mas não era pelo frio. Ali com o corpo ainda tomado pela adrenalina não conseguiu tomar logo a decisão de se jogar e tirar a própria vida. Ficou apenas parada vendo seus pés submersos.
O rio começou a se movimentar rapidamente e água fazia pequenas ondas. Ela se assustou mas não conseguiu se mover. Estática, apavorada e curiosa, essa era Maria nesse instante.
Do infinito azul escuro que era a água, devido a aproximação da noite, surgiu um ser apavorante que mesmo depois de muitos o descrever não se parecia com nada que já tinha pensado ou escutado. Era horrível. Nojento. Tinha cerca de três metros de altura, seu corpo estava coberto de musgo e lodo. Tinha uma cabeça enorme e desproporcional ao seu corpo. A face, estava em processo de decomposição.
Aquela imagem de filme de terror fez com que Maria sentisse uma intensa vontade de colocar tudo o que tinha no estômago para fora. O ser humano é uma incrível criação, mas que na presença do medo não funciona. Maria perguntava a si mesma o porquê de tanto pavor, uma vez que a única coisa que pensara nos últimos três dias fora em sua morte.
- Por que me amolas em uma noite de lua cheia? - Aquele monstro indaga. Para surpresa da moça, sua voz não era grave, tampouco se parecia com um rosnado, era similar a um jovem na transição da adolescência para a fase adulta. Sua voz transformou instantaneamente uma cena de terror em uma comédia.
Maria não conseguiu respondê-lo, quem conseguiria? Até então ela zombava da possibilidade da sua existência. Seus pés já estavam fora da água, a julgar pela sua expressão corporal está perto de fugir. Plano esse que facilmente seria interrompido por aquele ser gigante.
- É, eu sei o que está pensando. E sim, eu existo.- O nosso real mito, conversava casualmente, como se estivesse em uma roda de amigos.
Nas últimas semanas, tudo o que Maria da Conceição queria era alguém para desabafar, alguém que a entendesse e não lhe julgasse. Na sociedade em que vivia, dificilmente encontraria. Dessa forma, aproveitou dessa situação para que pudesse se abrir. E por sorte talvez conseguisse realizar de uma vez dois desejos fazendo a loucura de conversar com grande monstro em uma noite em que a lua cheia estampava o céu.
- Consegue entender o porquê do mundo ser assim? Digo, tão injusto? - Ela ria, pois entre todos os sentimentos que sentia estava a vergonha, se achava estúpida por se encontrar nessa cena.
- Sou um monstro castigado, não o Cara lá de cima. - Ele é duro e a corta rapidamente.
Mas as respostas secas não duram tanto tempo. Logo a bela donzela consegue amolecer o coração do Cabeça de cuia. Era possível até dizer que ele estava se divertindo com a companhia, viver eternamente em uma lago, a procura da morte para saciar-se pode ser uma atividade tediosa.
Escutam o trote de cavalos e ela se sobressalta. Certamente era os empregados se seus pais ou até mesmo a polícia.
- Não quero ir. Não pode deixar que me levem. -Ela gritava desesperada para o monstro, esperando que ele fizesse algo para ajudá-la. Por mais que ele a achasse uma boa companhia não iria contra sua natureza. Precisava de se alimentar do sangue da moça, em um ponto ela estava certa, ele não iria deixar que a levassem, ela pertencia a ele agora.
Por baixo das árvores era possível ver as luzes dos lampiões, o vento balançava suas folhas e os animais noturnos não faziam silêncio. Quando os cinco cavaleiros de chapéu e roupas desconfortáveis se deparam com as duas figuras no rio eles detêm os passos dos animais que de tão negros era possível ver apenas seus olhos.
- Não posso deixar que me alcancem!- Com essas últimas palavras ela se jogou no rio, sem nem saber nadar.
- Não se atrev...- O pai, que estava entre os cinco homens tenta gritar para deter a filha, mas tarde demais.
Ele acomodado em sua sela assiste a água tomar uma tonalidade verde e começar a borbulhar como em um caldeirão. Até mesmo o Cabeça de cuia se afastou não entendo o que se passava. Nas veias do cruel monstro não passava a corrente magnética que no geral o atraía até as virgens, não sentia a adrenalina pulsar seu coração. Era indiferente àquela garota.
Os cavaleiros que observavam tudo de longe também não entendiam. Mas, em uma noite de verão do ano passado, duas pessoas, um casal de apaixonados, entendiam o porquê. Maria da Conceição, já não era mais virgem. Ela não podia ser a garota pura que seu futuro marido esperava, ela tampouco queria ser essa.
A partir da presente noite, todas as garotas dispostas a fugir de seus casamentos indesejáveis começaram a clamar por Maria da Conceição a espera de um milagre que as salvem do futuro iminente.
VOCÊ ESTÁ LENDO
VIRGEM MARIA (CONTO)
NouvellesUm Brasil em um período que poucos arriscariam a viver. Uma cidade do interior do Nordeste baseada em mitos e tradições. Maria da Conceição, se vê presa sob as rédeas dos pais e quando a jovem fica noiva de um homem repugnante, surta e resolve fug...