Capítulo 2

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Quando sai do meu transe rápido era minha hora de entrar em cena.


Estou em minha cama acordando. O quarto está às escuras e vejo uma sombra se mover. No próximo segundo sinto uma mão forte tapando a minha boca. Sinto cheiro de um suor azedo e o homem me arranca da cama com um puxão violento.


As cobertas escorregam do meu corpo e vejo que estou nua. Grito enquanto ele coloca o braço por debaixo do meu pescoço e aperta com toda força. Meus olhos doem, meu coração acelera, o desespero toma conta de mim.


O homem coloca uma faca imensa e ensanguentada perto do meu rosto e manda eu me calar. Vai me soltando devagarinho:


— Se gritar mais uma vez, morre! — vocifera baixinho e sinto o cheiro de seu hálito pestilento, uma nota de álcool. Meu estômago embrulha.


Ele agarra meus cabelos e começa me puxar de volta para a cama.


— Vou sair desta — penso — Não entrei em cena para morrer.


Ele me joga violentamente sobre a cama. Coloca o joelho na minha barriga me fazendo urrar baixinho de dor.


— Quem é você? — pergunto, pois era a fala prevista.


Ele não responde. Vejo que ele puxa uma mochila que deixou em cima da cama e começa a procurar algo com a mão livre. Tento me libertar, mas o peso dele não permite que eu me mexa. Como a perna ele imobiliza meu corpo, a faca a milímetros do meu rosto novamente.


Vejo ele retirar lacres plásticos da mochila. Largou a faca para prender minhas mãos. Tentei morde-lo em vão. Ele era não só forte como experiente no que fazia. Com certeza eu não era a primeira vitima, e provavelmente não seria a última. O lacre se fechou sobre meus pulsos encaixando cada dentinho de sua superfície plástica, me imobilizando os braços.


Os olhos esbugalhados deste insano me olhando, totalmente indefesa, só me fazem pensar no maldito Jorge dos Santos.


—  Vai lá, Jorge — penso — me salva e me faz sua heroína na próxima história.


—  Já me servia tê-lo feito mais fraco — continuo refletindo — Mas criou um psicopata medonho, para poder descrever com seu talento macabro.


Ele usa um lacre semelhante para prender meus pés, apesar de todo meu esforço para impedi-lo. Assim que ele termina, pega a faca de novo e vejo um sorriso sinistro. Os dentes, incompletos, são amarelados e os olhos se estreitam visivelmente empolgados com o que está por vir. Ele passa a faca de fininho entre meus seios e vai descendo. A faca deixa um rastro de alguns milimetro de onde começam a brotar bolhinas de sangue minúsculas. Vejo o quanto este movimento o agrada e ele solta risinhos histéricos de quem está se deleitando. Um pavor vai subindo pelo meu corpo e só desejo sair desta cena bizarra o mais cedo possível.


Ele ergue a faca com suas mãos experientes e aproxima da minha garganta com um fervor de ritual. Sei o quanto é afiada pelo caminho deixado por ela em meu ventre sem que ele sequer fizesse força.


Fecho os olhos e..


Ouvimos o comissário Euclides arrombando a porta da frente. Este maluco detestável vê que não há alternativa, me solta e foge pela janela por onde entrou. Noto que a casa era baixa, térrea e moderna. Não conheço a casa, porque.. bem.. ela vêm da cabeça do Jorge e não da minha.


Saio de cena tremendo dos pés a cabeça. Ainda presa, porque a minha liberação não foi descrita no livro.


O comissário Euclides que também saiu de cena me olha quase comovido, enquanto retira as amarras das minhas mãos e pés com uma tesoura.


—  Obrigada por me salvar —  comento esfregando as partes doloridas dos meus pulsos onde o maluco colocou os lacres de plástico, que agora vejo melhor. Eram destes que as companhias aéreas colocam nas malas se você pede.


—  Agradeça ao Jorge — diz ele com um sorriso meio envergonhado — Não esqueça que só sigo ordens.


—  O que aconteceria se ele tivesse resolvido que eu vou morrer?! — pergunto com ar indignado, depois de me acalmar um pouco. Na hora da cena isto não passou pela minha cabeça.


Comissário Euclides e detetive Maddox se olham de forma cúmplice. Me deu a impressão que não era a primeira vez que eles respondiam a esta questão.


—  Bom.. — disse Euclides com olhos fechados como se não quisesse me olhar durante a resposta — Aí você está fora do livro.


Penso no que isto significa e coloco:


—  Bom, então que bom que o Jorge não quis que eu morresse...


Detetive Maddox me olha com pena.


—  Isto assumindo que você entra em cena de novo – comenta.


Esta ideia também não me havia ocorrido.


—  Posso não entrar em cena de novo? – respondo quase histérica.


Detetive Maddox me olha espantada, como se eu estivesse estranhando uma obviedade.


—  Mas eu quero. Quero entrar lá e atacar este psicopata sangrento que quase acabou com minha vida — Levanto a voz.


Maddox e o comissário Euclides de olham e ele formaliza:


—  Agora há pouco perguntou se não pensamos em deixar isto aqui... Enfim... Esta decisão é do Jorge — me olha diretamente nos olhos e sorri. Quase penso que vi uma ponta de sarcasmo.


—  E o que acontece comigo se eu não entro em cena de novo? — pergunto exasperada.


Detetive Maddox e o comissário são chamados para a cena, sem sequer terem tempo de responder. Fico ali, sozinha.


—  Onde estarão os outros personagens? — penso.


Olho para mim e me vejo cinza. Pareço estar apagando. Sinto tonturas.


—  Hey, Jorge! — tento balbuciar — Sou um carácter forte. Me bota lá de volta. Vou acabar com este psicopata. Quero ser a heroína da próxima história.


Minha cabeça está zonza. Fecho os olhos.


Jorge decidiu que não existo mais.

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