Umbral
A chuva parecia piorar a cada minuto. A ida ao café, que a princípio parecida uma boa ideia, agora parecia uma péssima escolha.
- Sabe, existe uma lenda que diz que todos nós nascemos ligados a outra pessoa por um fio vermelho, que é o nosso destino conhecer a essa pessoa. – ela tenta puxar assunto, o silêncio incomodava.
- Você acredita nisso? – Tomás sorveu um rápido gole do seu chá, em seguida baixou a xícara ao pires.
- Ainda muito quente? – Ana sorri pelo canto da boca.
- Sim... – ele confirma enquanto analisa a fumaça em um devaneio – Mas você não terminou. Você acredita nisso?
- Não sei, é um tanto poético. Eu gostaria de acreditar.
O brilho dum raio chega até eles, em seguida o som levemente abafado pela chuva.
Os dois parecem se encarar por uns segundos. Tomás aparentemente perdido num dos seus pensamentos, Ana olhando-o fixamente e perdida em seu olhar, aqueles belos olhos cor jabuticaba que ela tanto amava.
- E se pedimos a conta? – Ele sai de seu devaneio num breve meneio com sua cabeça.
- Nós já a pagamos. – Suspira.
- Então é isso? – ele esfrega suas bochechas, já rosadas devido à calefação dali.
- Sim. – ela se levanta e ajeita com delicadeza seu longo vestido branco bordado – Tomás?
- Sim? – ele parece sair de mais um de seus pensamentos, aquele era um dia atípico.
- Você acredita, mesmo que apenas um pouco, que ainda possamos ser o que éramos?
- Não.
Ambos suspiram numa leveza extraordinária.
- Bem, eu vou indo... – Ana dá apenas um par de passos em direção à porta quando é surpreendida:
- Eu te acompanho. – ele gagueja – Bem, se você quiser.
- Eu não me importo, na verdade. – Ela segue seus passos, sem sequer olhá-lo nos olhos e perceber que lhe escapou uma lágrima.
A jovem empurra a porta e sente o vento úmido e as gotículas d'água tocando seu rosto. Respira fundo e por um segundo lembranças de sua infância pacata invadem cada rincão sua mente. Sente um cheiro de grama molhada, mas sabe que aquilo é fruto de sua imaginação.
Ainda no umbral e obstruindo o caminho de qualquer um que pudesse querer passar por ali ela se vira, o beija em uma de suas bochechas rosadas, solta seu guarda-chuva e corre em direção à rua enquanto sua mente evoca suas melhores recordações de infância e simultaneamente registra aquele momento num espaço especial de sua memória. A morte poderia ser especial.
Suspirando ele abre aquele guarda-chuvas transparente que ela havia deixado enquanto o beijava. Ele a conhecia suficientemente bem para entender que aquele beijo era uma despedida.
Em sua última lágrima ela reconhece seus erros.
Cada um deles teve um ao outro como último pensamento. Para Tomás esse momento chegou apenas algumas décadas depois.
Um carro freia bruscamente, mas não rápido o suficiente para evitar o impacto com o jovem corpo esguio dela, que, lançado no ar, deu algumas voltas antes de atingir o rígido asfalto úmido.
Um fio vermelho vivo deslizava através do corpo dela pelo pavimento encharcado em direção a Tomás. Esse mesmo fio o fez lembrar daquele que ela acreditava que os unia e permaneceria intacto em cada minuto que um estaria distante do outro. Nem a traição nem a morte o romperia.
Jamais.
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Umbral
RomanceAlguns acreditam que um fio vermelho nos liga à nossa alma gêmea desde o momento de nosso nascimento até a nossa morte. Mas o que acontece quando a morte chega antes do tempo?