Laura

130 5 0
                                    

14 de Setembro de 2005, quarta-feira, 2:30 da tarde

            Sem vontade ou ânimo, Laura sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e retornou ao trabalho. Olhou para a janela, na qual as torres da Avenida Paulista eram visíveis e suspirou com tristeza, pensando na imensidão de horas e dias que faltavam para a noite de sexta-feira, para que surgisse o momento em que aquele cenário ganhava cor, vida e mistério, quando aqueles emaranhados de metal tornavam-se imensas gárgulas de metal cobertas de luz amarela, a cortar a noite, quando  o mundo passava a ser sedutor e a encantar; pois durante o dia nada fazia sentido ou importava, o dia não era nada além de uma massa de horas em que ela fazia as coisas que tinha de fazer – trabalhar e ganhar um suado e pequeno dinheiro, e assim ter um teto  – para garantir sua verdadeira vida, sua vida noturna, a que valia a pena, que entusiasmava, que fazia seu corpo e espírito viverem de fato.

            Para suportar melhor o restante da tarde foi à cafeteira, encheu um copo até a borda e engoliu uma enorme golada de café; e enquanto verificava as mensagens e reclamações dos clientes relembrava os momentos de parar a respiração e a pulsação, as cenas incríveis e inexplicáveis que presenciava todos os fins de semana, os segredos, horrores e maravilhas que caminhavam pela escuridão e dos quais se tornara dependente. Enquanto engolia a bebida fumegante um punhado de lembranças de sua vivência na noite desaguou na consciência, tão coloridas e nítidas que o desespero cresceu.

            Seis meses antes

Sábado à tarde

            Laura terminou de varrer seu quarto, recolheu os papéis amassados empilhados ao lado da escrivaninha e olhou para a janela. Estava suada, os braços doloridos, seu cabelo era uma confusão de fios retorcidos, mas estava feliz, cheia de ânimo. Fim de tarde! A noite de sábado aproximava-se e chegava o momento de produzir-se, de vestir seu traje de noite, maquiar-se a rigor e correr para o Darkness, seu querido Darkni, com sua escuridão inspiradora, sua infinidade de rapazes, suas músicas eternas – sempre as mesmas, para deleite dela e de muitos, todas as coisas que felizmente nunca mudavam, os marcos de um templo sujo e escurecido onde os seus amigos, os estranhos, pervertidos e seres da noite se encontravam, onde ela era uma pequena diva, com seu pequeno séqüito ao redor, no qual ostentava um duvidoso poder de sedução e uso no qual ela mesma acreditava cada vez menos a cada sábado...

            A noite se aproximava. Sentou-se em sua cama de solteiro e observou, da quitinete encravada no topo de um prédio decrépito da Liberdade, a noite chegar. Primeiro as nuvens próximas ao horizonte tingiram-se do mesmo vermelho que inundou a parte mais baixa do céu, depois a tonalidade sanguínea morreu e deu lugar à escuridão cada vez mais densa. Quando a luz do Sol por fim morreu e a noite, vinda de longe, do outro lado do mundo, engoliu a cidade, um sorriso surgiu no rosto de Laura e lá ficou, um sorriso cheio de malícia e audácia. A noite era o mundo dela, as luzes da cidade, garotas pintadas, irresistíveis – ela era uma dessas –, tudo de misterioso, sedutor e belo que havia no mundo, para Laura e seu povo, concentrava-se na noite. 

            Sábado à noite

            Mal passava de uma da manhã e a noitada já tivera tudo que ela esperava – conversas recheadas de maledicência com os amigos, em que rebaixavam pessoas que eram-lhes íntimas há pouco tempo antes, muita bebida, sexo casual com um sujeito do qual soube apenas o primeiro nome, o ato feito no duro banco de cimento defronte à pista de dança, o ambiente ao redor deles totalmente escurecido, ele sentado, segurando-a nas ancas, ela conduzida pelas mãos apressadas dele, subindo e descendo, ao ritmo da pesada música eletrônica que saía das surradas caixas acústicas. Outra trepada que terminou rápido, o sujeito nada preocupado com o prazer dela, mais uma que serviria apenas para ser relatada às amigas e ser acrescida à lista de “loucuras” que fizera para manter sua imagem que tanto prezava; muito pouco, entretanto, para uma verdadeira satisfação, física ou psicológica. Em um íntimo que tornava-se, a cada sábado, cada vez mais evidente, mais fácil de ser captado por aqueles que a conheciam e mais pesado para ela, todo o cabedal de excessos e diversões perigosas que Laura podia mobilizar apenas cansavam-lhe o espírito e serviam para acentuar o  vácuo que era sua existência. Ela não sabia mais como enfrentar a simples existência do dia seguinte, apenas fingia que não haveria dia seguinte e que a vida diurna era um intervalo antes de a noite se iniciar.

LauraOnde histórias criam vida. Descubra agora