2. Limão

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Não me considero uma pessoa boa, no geral: o ser humano tende a mensurar a bondade alheia de uma forma bem esquisita, usando ações como critério. E esse critério é distorcido, na minha opinião. Tendo vivido por curtos dezessete anos - tantos quanto Joana, agora - percebi rapidamente, mas com relutância, que ser considerada boa não é tão difícil: sorrir nos momentos certos, fazer o que seus pais te pedem, não fazer birra adolescente diante de tarefas simples que adultos realizam todos os dias (não que eles não reclamem, mas ninguém gosta de que isso seja ressaltado). E é isso: tchanã! Você pode cultivar a qualidade mais estranha de gostos musicais, opiniões políticas ou hobbys, mas - pelo menos na minha família - se eu vou à missa costumeira de domingos e sou gentil com a minha avó, tudo pode ser concedido, tolerado ou arranjado.

Em decorrência disso, não por um esforço especial da minha parte e muito menos por convicções próprias, sou uma pessoa "boa". Prazer, Thaís. 

No meio de tudo isso, Joana sempre foi para mim uma fonte de emoções tão agridoces que às vezes estar próxima dela é como beber litros de limão batido com groselha sem parar: é a doçura que permeia cada um das camadas que a compõe contrastando sem medidas um amargor meu do qual não me orgulho.

Ela é tão intensa, tão dramática, tão carinhosa e tão convicta sobre tudo o que pensa que me desconcerta na maior parte do tempo desde que a conheci, no parquinho da escola primária. Mas é claro que essas características não tornam Joana não é uma bebida, e, mesmo se fosse, essa acidez do limão a ela não pertence. Minha metáfora meia boca se referiu a como me sinto quando estamos juntas – o que acontece, aliás, praticamente todos os dias do ano.

A questão aqui, na verdade - eu não tenho habilidade com palavras e muito menos com sentimentos - é expor a maneira através da qual a minha proximidade com uma pessoa tão autêntica como Joana, minha Jojuba, faz um suco ácido borbulhar no meu estômago, tornando-me profundamente ciente do quão aquém estou de ser boa, de ser carregada de tãos, assim como ela.

Sendo tão intensa e tão ela mesma em relação a todos, minha amiga brilha de uma forma incomparável a qualquer um que eu já tenha conhecido. E é por tudo isso e ainda além que eu a amo. Ela é mais do que eu me permito ser e do que mostro às pessoas, e a doçura pungente de sua personalidade contrabalanceia o meu jeitinho limão de ser.

E talvez seja por isso que me expor seja difícil, ainda que Joana tenha sido - e seja - minha melhor amiga da vida toda. Por muito tempo me debati contra a dúvida em silêncio, sem experiência nenhuma nessa coisa toda de sentir- e-demonstrar desde uma experiência desastrosa que envolveu um passeio escolar ao Jardim Zoológico e a minha quedinha pela menina mais esperta da classe no Ensino Fundamental.

Parecia simplesmente errado querer prolongar abraços, tocar sua mão com a minha enquanto caminhávamos, sentir o cheiro almiscarado dos seus cabelos por alguns segundos a mais quando lhe dava bom dia. Eu me surpreendi evitando a sua presença com lágrimas nos olhos e uma vontade imensa de me afogar nos seus lábios sem pensar em consequências. Cada centímetro mais próximo era como uma pequena descarga elétrica sobre a minha pele, e essas sensações se intensificaram de uma maneira tão familiar, que para mim mesma eu repetia que era natural, porque Joana era e é a melhor pessoa que conheço.

Isso não significaria ir além do que eu me permitia, mas a cada segundo desde o momento no qual me surpreendi observando seus olhos brilhando enquanto tagarelava sobre um vídeo qualquer que havia visto na internet, meses atrás, com uma força que ia além do que me era conhecido, eu sabia que não conseguiria parar por vontade própria. Uma acidez passou a corroer-me a cada dia que passava, e não parecia justo viver dessa maneira.

Assim, apesar de todos os impedimentos que criei para simplesmente me calar e esconder esse assunto debaixo do tapete, três meses antes do aniversário da pessoa que eu pensava que seria a mais compreensiva do mundo comecei a preparar um plano. Comprei outro volume - bonito, em uma edição capa dura - de seu livro favorito e dentro dele derramei todos os pedacinhos que me faziam Thaís: quem eu sou para os outros e para ela, quem sou quando todas as luzes se apagam e o único brilho na penumbra vem dos olhinhos da minha gata encarando os meus.

Eram dezenas de post its. Foram noites em claro para cada anotação e observação engraçadinha que escrevi nas margens das páginas. Coloquei fotos, bilhetinhos e uma carta que custou uns cinco dias para ser terminada, além do envelope pequenininho que colei com fita adesiva logo depois da última página.

E tudo isso para quê? Para a otária da Joana me responder:

"LI, UÉ".

Se isso não justifica a minha fuga da pizzaria e a minha humilhação total diante da única pessoa que já quase me entendeu por completo, não sei o que justificaria. Os meus pedacinhos ficaram dentro daquele livro. Será que Joana ao menos algum dia irá devolvê-los para mim?

Groselha com Limão [conto]Onde histórias criam vida. Descubra agora