O relógio do quarto marcava 23 horas, quando eu, finalmente, terminava os detalhes do novo quadro. As mãos sujas de tinta preta, algo já característico, pincelavam levemente a obra que eu concluiria ainda antes da meia noite, detalhando com cuidado até os mínimos traços do mundo incolor que estava impresso na tela em minha frente. Era algo muito rotineiro: todas as noites, logo após as aulas, eu me aventurava em frente a uma tela branca com inúmeros tons de preto e cinza. Era isso: uma tela, duas cores de tinta, roupas velhas e uma boa playlist no Spotify soando pelo atelier.
Minha blusa branca, já acinzentada por conta das tintas, servia geralmente como pano para os meus dedos, já que eu a possuía há alguns longos verões. Nos meus fones, a melodia bem marcada de "The Beach
" tocava em um volume consideravelmente alto, o que me fazia viajar cada vez mais na pintura em minha frente e a mensagem passada na voz de Jesse Rutherfod, que consequentemente me fazia largar todo o estresse acumulado durante o dia todo e me concentrar apenas nas ações realizadas durante aquele espaço - consideravelmente pequeno - de tempo.
— Terminei! - exclamei após a finalização da pequena xícara de chá que a moça sentada ao fundo bebia tranquilamente -
Parei para observar a obra recém concluída à minha frente, no mesmo ritual de sempre: três passos para trás, nem tão perto nem tão longe, mas o suficiente para observar a obra como um todo, e ver. Viajar além do retratado e pensar no que - realmente - significava o mundo à minha frente.
O quadro não era singular, alguns diriam que sim, ele era, pois retratava uma praça. Eu o enxergava além da praça. Conseguia ver cada pessoa ali retratada, como se as conhecesse profundamente... vazias, era assim que elas eram. Eu via todos os bancos e conhecia todas as flores, mesmo agora elas se fechando, decorrente à estação. Logo atrás a cafeteria, onde eu tinha certeza de que o melhor dali era o "Irish coffee", porque por algum motivo, eu me sentia na Irlanda observando aquele quadro.
Me sentia parte daquela praça, daquelas pessoas e da simpática cafeteria onde duas moças conversavam e bebiam chá numa tarde outonal.
Em minha playlist agora tocava uma melodia nostálgica, indicando o começo de "Daddy Issues". Mais uma vez, observei a obra delicadamente, gravando em minha mente cada mísero detalhe, como se não fosse eu que o tivesse pintado. O firmamento, nublado como em todos os outros retratos me deixava feliz, pois era uma grande e bela parte da complexidade daquela obra tão pessoal... era minha, mesmo - ainda - sem meu nome nela, era minha. Era uma parte minha que me deixava orgulhosa de mim, um estágio de admiração pelo que foi por mim criado.
Meia-noite. Estava na hora! Desci até a cozinha, em busca do cupcake de blueberry que eu comprei especialmente para aquela hora, e enquanto tentava acender a pequena vela branca em seu topo, eu procurava nos meus pensamentos, algo que eu tinha vontade de pedir. Meu desejo anual era uma importante parte daquele dia, e, com a vela já acesa e o pedido ainda nublado, voltei ao atelier onde estava a minha nova obra.
De frente para ela, então, eu tive a certeza de que não existia nada que eu queria mais do que me sentir parte de algo... e o que é mais familiar do que algo feito por mim? Então eu finalmente soprei a vela, dando início não só aos dezesseis anos, mas também a, talvez, a aventura mais louca da minha vida.
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Metanoia
Teen FictionMetanoia substantivo feminino 1. mudança essencial de pensamento ou de caráter. 2. transformação espiritual. 3. arrependimento por falta cometida; penitência. ETIM gr. metanóia, as 'mudanças de sentimentos' Em seu aniversário de dezesseis anos, Mia...