Cotidiano de Vidro

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‌Abriu os olhos mais uma vez na mesma madrugada e voltou a olhar o relógio digital ao lado da foto do pai encima do criado mudo. Batiam exatas 05:15H da manhã dessa vez, não esperaria mais quinze minutos, apenas jogou os cobertores para o chão e levantou rápido o suficiente para sentir uma forte tontura. O vento gelado entrando pela janela quebrada do quarto era  irritável, no mínimo, e a fez dar um pulo até a mesma para arrastar a placa de madeira  avulsa até a falha cheia de cacos vivos da janela quebrada. Terminou de ajustar o remendo improvisado e foi a procura de uma pinça e curativos, já havia cortado a mão com farpas tantas vezes que era uma tarefa indolor atualmente.

Levantou-se do vaso guardando todos os objetos no armário embaixo da pia e procurando sua maleta de maquiagens. Não eram exatamente suas, sobras do que a mãe não usava mais e ela fazia questão de pegar da bolsa alheia. Passou uma camada generosa de base embaixo dos olhos cansados de ressaca, e apenas depois resolveu corar as bochechas com pó.

A face totalmente manchada e desigual em cores mal espalhadas, o cabelo negro preso assim como tinha sido antes de se deitar e a camiseta mostrando até o início do colo de tão larga e amarrotada escondendo a calcinha por baixo. A mesma maquiagem, a mesma roupa, o mesmo cabelo, a mesma rotina, as mesmas bebidas, desistências, palavrões, as escadas descidas em caracol... Os mesmos dezenove anos desde que se lembrava.

   — Chegou tarde ontem outra vez.

   — Eu sei.

Os diálogos eram os mesmos quase todo dia. Era melhor desta forma, era simples e coordenado com seu cérebro cansado. Esperou a afirmação chegar até os ouvidos da mulher sentada à mesa para continuar.

     — Vou precisar do carro hoje.

     — Não vou te dar a chave, Hanna

     — É aniversário dele.Ele vai ficar tão decepcionado...

Viu a mãe suspirar e largar a xícara de café na mesa apertando a própria mão até seus dedos ficarem brancos. Hanna sabia com o que mexer ali, cada peça que colocasse seu falecido pai em pauta traria um misto de tristeza e raiva na própria mãe. A mais velha passou a mão pelos cabelos curtos e deslizou até a mesa novamente.

    — Até o cemitério, depois direto de volta. Eu ainda odeio essa sua ideia. Você é tão teimosa quanto ele, eu odeio isso.

Pegou a chave e depositou na tábua de madeira em frente aos olhos da garota que pegou, se virou e apenas subiu para trocar de roupa, aquele frio era infernal.

                           ·—★—·

Estava na via mais limpa da rodovia, a única que não tinha neve até metade da porta do carro antigo cor de vinho, os pneus gritando de frio em cada curva, o vidro totalmente manchado das tentativas de desembaçar o mesmo com a manga do casaco e os parabrisas cheio da neve que empurravam.

O portão do cemitério era o mesmo de sempre, enferrujado, com cheiro de ferro antigo e cheio de espinhos de metal feitos pelo tempo e camuflado na água congelada.

O túmulo que procurava era longe da entrada, longe o bastante para passar pelo mesmo coveiro três vezes enquanto ele andava e retirava a neve de algumas lápides.

Se atentou a de seu pai, coberta de neve e gelo devido a uma árvore seca logo atrás dali, enquanto as de seu lado estavam  limpas no máximo da situação.

   — Enquanto isso a sua lista de coisas e pessoas que não gostam de você só aumenta, aparentemente.

Se sentou de frente para a pedra de cimento com o nome do familiar falecido e deu uma leve passada com a mão no pequeno altar tentando espantar a neve dali, na tentativa de fazer algo frio eternamente se sentir menos desconfortável com o ar gélido da estação.

    — Eu espero realmente que onde você está seja menos tedioso que aqui. As únicas novidades são a mamãe tomando remédios novos e eu sabendo o caminho de volta pra casa depois da sétima esquina, eu sempre me perdia. Ah, feliz aniversário. Eu devia ter te trazido alguma coisa mas você não gostava das camisas que eu dava de presente, tudo bem, eram horríveis mesmo.

Fazia um ano e três meses desde o falecimento do homem. Ninguém entendeu direito se fora um derrame, um ataque cardíaco ou se o pulmão dele não aguentou a última tragada no cigarro, mas se entendia que a esposa ainda o odiava por várias coisas mesmo depois do falecimento.

    —Eu preciso ir, mamãe já não é minha fã número um, se eu descumprir alguma regra dela hoje, provavelmente eu veria o senhor ainda essa noite. Eu também não gosto dela, sabia ? Depois que você foi embora ela parece ainda mais chata e irritada. –jogou a chave do alto móvel para cima várias vezes, parando apenas quando o mesmo coveiro de mais cedo a olhara feio, o deixando ainda mais horrendo que antes e bateu a pá no tronco seco atrás do túmulo, fazendo cair tanta neve quanto na nevasca da noite anterior  –Parece que também não gostam de mim aqui. Ah, que porra de inferno, me leva daqui, pai!

Levantou num salto, tropeçando na neve densa atrás de si e nas botas de inverno, olhou pesarosamente pro túmulo mais uma vez desejando um parabéns silencioso e voltou até o carro com as mãos geladas nos bolsos do casaco, a direita tocando o metal da chave e arrepiando seus nervos até as costas lhe provando a sensação de estar saindo de um cemitério.

A estrada ainda mais cheia de gelo, fazendo o carro escorregar como uma folha ao vento no meio das árvores onde passava. A tenção de dirigir daquela forma e naquele local faziam a garota suar como no verão.

Controlou o volante com uma mão enquanto tirava o braço oposto de dentro do casaco, fez o mesmo com o outro e arriscou tirar as duas mãos da condução para embolar a peça de roupa grossa e jogá-la embaixo do banco do passageiro.

Subitamente sua mão encosta no ferro do banco ocasionando um calafrio intenso que foi acalmando quando a mão fina e pálida tocou uma superfície áspera e menos fria.

Puxou o objeto notando um amontoado de cartas amarradas por um barbante de linha fina. "Ao Tempo, Urgente" era a única frase na frente do primeiro envelope, desamarrou o barbante ora usando as duas mãos, ora usando apenas uma enquanto a outra voltava o carro para a linha reta que era a estrada. Um montante de no mínimo sete cartas, todas destinadas ao tempo, amor e, peculiarmente, para a morte.

    — Mas o que...

Antes do término da frase a garota se via apenas de uma forma, miserávelmente prensada entre o banco, o airbag da caminhonete vinho que dirigia, inclinada para baixo em uma rampa de neve e terra e com um galho de madeira destacado de alguma das muitas árvores que cercavam-na agora em seu braço.

Com a visão embaçada, viu pegadas através do vidro levemente ensanguentado e apenas ouviu uma voz masculina que dizia "merda, essa não. É culpa sua!" E fechou os olhos para dar fim em seu cotidiano de vidro daquele dia.


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⏰ Última atualização: Jun 08, 2019 ⏰

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