Parte I: Depois da tempestade

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Estou no mesmo ônibus barulhento e sujo de antes. As cadeiras, totalmente desconfortáveis, tremem ameaçando quebrar a qualquer momento. O barulho do motor, um rugido desesperador e quente, me traz uma sensação de nostalgia. Observo pelo vidro, riscado e trincado, as ruas estreitas que se seguem umas após as outras, separadas por árvores velhas, mesmo assim, imponentes. Passo por um balão onde há uma estátua iluminada no centro da interligação das pistas; a estátua de Jesus Cristo, olhando para todos os lados e nenhum ao mesmo tempo. O ar não está nem quente e nem frio, mas sugere a chegada do inverno em alguns dias. Algumas pessoas, sentadas dentro do ônibus, parecem exaustas; A maioria voltando de uma jornada de trabalho longa e cruel. Aninho minha bolsa nas pernas e continuo prestando atenção nas luzes da cidade, nos carros que vão e vem, desesperados para chegarem até o seu destino. Observo um casal que acabara de entrar no ônibus. Eles se sentam um ao lado do outro e o homem acaricia a cabeça da mulher enquanto ela se recosta em seus ombros. Fico um bom tempo observando o casal, tempo até demais. Quando me dou conta, estou próximo do meu ponto de destino. Me levanto e dou o sinal para descer. O ônibus para depois de alguns minutos e eu desço. O ônibus se vai, me abandonando com um punhado de poeira nas costas. Respiro o ar. Está gelado, mas não gelado o suficiente para causar calafrios no corpo. Respiro fundo, ajeito a bolsa nas costas e começo a andar. Desço uma viela estreita e esburacada. Há um vazamento de água não muito longe de onde estou, inundando o chão. Acendo a lanterna do celular pela falta de iluminação do ambiente e piso em lugares estratégicos para não cair. Me sinto novamente com quinze anos de idade, quando costumava fazer a mesma coisa todos os dias. Desço a viela até a metade e então viro a rua. Meu coração palpita enquanto me aproximo da calçada de pedras amarronzadas: não mudou absolutamente nada exceto pelo fato de que as pedras estão lascadas e cheias de musgo entre as linhas de cimento que as separam. Paro em frente ao portão, ainda branco, mas terrivelmente enferrujado e observo. Não há carro na garagem, mas há uma luz ligada. A luz do banheiro. Solto o ar dos pulmões, mas antes que possa tocar a campainha, algo me chama atenção do outro lado da rua. Caminho até lá e me deparo com alguma coisa escondida atrás de uma árvore. Dou a volta e olho. Ele me olha e imediatamente mia. Abro um sorriso. Geraldo, o meu gato preto, já está bem grande, e pelo jeito, se aventurando pelas noites serenas do meu antigo bairro.

— É bom te ver de novo, amigão. - Digo, acariciando sua cabeça. Ele aceita o carinho e logo em seguida começa a se enroscar na minha perna. Olho para o lado e vejo um banquinho de madeira, muito provavelmente colocado ali pelo vizinho que sempre adorou tomar um ar fora de casa durante o dia — além de colher informações preciosas sobre a vida dos outros para espalhá-las para quem estivesse interessado em saber.

Resolvo me sentar no banquinho. Tiro a mochila das costas e pego um maço de cigarro sabor menta, o meu preferido desde que comecei a fumar. Coloco o cigarro na boca e acendo o fogo. Queimo a ponta do cigarro e trago a fumaça doentia para dentro dos meus pulmões, aliviado. Solto a fumaça e observo ela se espalhar pelo ar como lascas de vidro.

— Então é verdade. Você voltou mesmo.

Aquela voz me era tão familiar quanto Geraldo. William. Estava parado, próximo dali, em um lugar pouco iluminado. Como eu não havia notado a sua presença?

— Sim. - Eu disse, mas algo dentro de mim queria dizer para ele que era óbvio que iria voltar.

— Confesso que pensei que não viria, mesmo com... - Ele parou a frase, porque não sabia exatamente se poderia dizer as próximas palavras sem que alguma reação negativa da minha parte viesse à tona.

— Eu devo isso a ela. - Foi tudo o que disse. Eu queria poder dizer mais, queria poder contar para ele como estava, de fato, me sentindo por dentro, mas algo dentro de mim era como uma barreira; continha em segurança quaisquer resquícios de fraqueza - ou humanidade.

PRIMEWhere stories live. Discover now