O quarto de Rylei cheirava a velas derretidas e ressentimento. Na parede, um pôster da banda The Ravens escondia uma mancha de umidade com formato de crânio.Ela amava aquele quarto. Não por ser grande, nem por ser bonito, mas por ser só dela. Um santuário cor-de-rosa onde as lágrimas não pediam licença para cair e os sorrisos, quando raros, tinham permissão para brilhar. Ali, os dias ruins desabavam sobre os travesseiros, e os bons encontravam abrigo nas paredes cheias de desenhos e memórias.
Apesar de calada, Rylei era intensa. Ela falava com os olhos, com o silêncio e, principalmente, com os desenhos. Cada linha em seu caderno era um fôlego roubado da realidade, uma tentativa de manter a sanidade enquanto o mundo do lado de fora ruía aos poucos. Naquela mesma manhã, antes do mundo desabar de vez, ela havia desenhado um pássaro azul. Ele pousara em sua janela por alguns instantes — calmo, quase solene — e aquilo bastou para que o transformasse em tinta, cor e papel. Era bonito. Tão bonito quanto irreal. Ela sabia disso. Pássaros não vinham mais tão perto das casas. Não mais.
Então o cheiro de café lhe invadiu as narinas, insistente e quente, como um sussurro de normalidade. Barulhos de talheres se misturavam à fumaça que subia da cozinha. Rylei inspirou fundo. O mundo ainda girava. Pelo menos por enquanto.
Ela saiu do quarto. A porta rangeu um pouco — um protesto antigo — e seus pés descalços tocaram o chão frio do corredor. A luz da cozinha a cegou por um instante. Sua mãe, Adelle, estava prestes a subir com a bandeja de café da manhã, e parou, surpresa.
— Você acordou — disse, como se fosse um milagre.
Rylei apenas assentiu. Cabelos rebeldes, olhos borrados pelo delineador que resistira à noite, pijama amassado. Mas havia algo mais nela: um peso nos ombros, um olhar que dizia que estava ali por esforço, não por vontade.
Na mesa, Ricardo já estava pronto. Como sempre. Camisa abotoada com perfeição, relógio no pulso, cara de quem já estava atrasado para tudo. Já Adelle ainda lavava a louça entre goles de café.
Era o aniversário da tia Sônia. E por mais inútil que parecesse agora, todos tinham se comprometido a comparecer.
Rylei sentou-se sem dizer nada. Seus olhos estavam fixos no vapor que saía da caneca, mas sua mente ainda estava no pássaro azul. Pensava em como aquilo talvez tivesse sido um aviso — ou um adeus.
— Mau humor? — perguntou Ricardo, sem levantar os olhos do celular.
Ela não respondeu. Porque se abrisse a boca, talvez gritasse. Talvez dissesse que algo estava errado, que sentia no estômago um desconforto que café nenhum curaria. Que as coisas estavam prestes a ruir.
Mas não disse. Apenas bebeu o café. E deixou o silêncio falar por ela.
"Você vai sentir falta desse teto quando estiver pagando aluguel", Adelle dissera naquela manhã, esfregando batom no copo de café.
Rylei não respondera. Observara, em silêncio, as veias azuladas pulsando no pescoço da mãe.
Ainda naquela manhã, quando o cheiro de café já havia se rendido ao ar seco da casa e os pratos descansavam em suas prateleiras como soldados após a batalha, Rylei calou seus pensamentos. Dallas era o destino. Tia Sônia os esperava. Mas algo a corroía por dentro — uma sensação incômoda, como se o mundo estivesse prestes a tossir sua alma para fora.
Ela notara o silêncio da vizinhança nos últimos dias, e mais do que isso: a ausência da menina da casa ao lado, com quem costumava ver pulando corda na calçada ou soprando bolhas de sabão contra o vento. Agora, apenas as árvores se moviam. Numa tarde anterior, espiara a mãe — Adelle — conversando baixinho com uma amiga no portão. "Náuseas", dissera. "Febre, enjoo, e uns tremores nos dedos." Mas não era só ela. Outros no bairro estavam iguais. Rylei ouvira nomes, frases soltas. Era como uma doença que caminhava em silêncio pelas ruas, tocando de porta em porta.

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THE RUNNER (Reescrito)
HorrorO mundo acabou correndo. Uma doença misteriosa tomou conta das ruas, transformando pessoas comuns em predadores incansáveis. Eles não andam. Eles não hesitam. Eles caçam. Agora, Rylei, apenas 16 anos, está sozinha. Seus pais foram devorados pela fom...