O terceiro estalar de dedos

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A altura era estonteante e poderia causar taquicardia a acrofóbicos pela simples menção ao tamanho vertical do edifício. Pelas amplas janelas podia-se ver até os limites mais pobres do município e observar uma cidade incrivelmente pequena aos olhos de quem residia naquele andar. O dia estava cinzento.

Apesar da construção estar no meio da metrópole, posta quase como um monumento no coração do caos, os únicos sons audíveis eram os ventos lamuriosos, esfregando-se contra as vidraças. O clima chuvoso espalhava pela região um véu fúnebre e enjoativo, empapando tudo com a tonalidade morta do cinza.

Pietro acendia seu último cigarro, tinha o completo conhecimento do seu vício, porém, sentir a nicotina infiltrar pelos pulmões e bagunçar aleatoriamente sinapses no interior do tecido nervoso, era um sentimento do qual jamais poderia largar, além de ser uma de suas maiores armas contra o bloqueio criativo. E este era o motivo de gastar um item tão valioso entre os seus lábios naquele instante.

Arfou uma jocosa tragada, deixando seus ares tóxicos agirem nos pulmões por alguns segundos, sentiu um leve arrepio na região posterior da nuca e por fim soltou os gases do cigarro. Ajeitou-se na cadeira reclinável, agora estava apto a escrever e produzir. Refletiu alguns instantes, pairando os dedos sobre o teclado, porém sempre com algum receio de não estar maduro o suficiente para expressar seus pensamentos idealizados em qualquer forma de mídia. Uma simulacra demasiadamente distante da sua Ideia eterna para se quer poder existir de alguma forma.

Refletiu por um tempo e vagueou no interior da mente em busca de inspiração sobre quais temas abordar primeiro. Como iniciar? Como elucidar todos os seus pontos, tentando evitar a todo custo duplas interpretações ou frases inconclusivas, não permitindo a seus adversários utilizar de alguns erros de concordância para desmantelar o artigo inteiro? Seria fácil expor seus pontos durante uma conversar informal, um diálogo dentro de um café ou lanchonete amigável. Mas não era essa a situação. Platão estava certo, as palavras não conseguem expressar todos os nossos pensamentos latentes. Como expressar uma ideia ou visão tão facilmente corruptível, usando-se de palavras tão pobres e voláteis?

Bateu freneticamente com a tampa da caneta no encosto da cadeira. Tragou mais uma vez o cigarro, enquanto agradecia pelo seu vício ser sobre um dos poucos bens a não enfrentar catastrófica escassez nos mercados. Ainda que somente uma fração da população tivesse sobrevivido ao primeiro estalo, o pequeno punhado buscou apoio e algo próximo da esperança ou sentido em vícios e religiões. O mercado de velas, destilados, tabaco e drogas ilícitas em geral jamais observou uma demanda desse tamanho vindo de um mercado consumidor tão enxuto.

O controle populacional de Thanos acabou por ser impiedoso com o povo terrestre, seu estalar de dedos custou dolorosamente mais do que o esperado, levando muito além da metade. A humanidade prevaleceu em frangalhos com seus míseros dois bilhões de habitantes. Físicos e charlatões especulam sobre o tal motivo; julgam que o efeito da manopla acabou sendo mais severo sobre a Terra devido ao fato de o ocorrido ter sido sobre o solo de nosso pálido ponto azul. É mais provável ser uma simples coincidência, provando o triste fato de que até a aleatoriedade amaldiçoa os seres humanos.

O tom chuvoso do dia, acinzentava a cidade sob um manto fino e entristecido. Hoje se completa um ano e são poucos lugares no mundo os quais festejam. A quase unanimidade da população prefere se resguardar em seus trabalhos ou lares. Deveria estar em casa, aproveitando o feriado com a esposa e filho, pensou, contudo, era melhor se distanciar do mundo e respirar o ar da solidão, existiam inúmeros assuntos não resolvidos no momento.

Pela janela avistava apenas construções inertes, pálidas, envoltas por um manto envidraçado o qual refletia o mundo ao redor, criando uma imagem própria à custa de todos os outros; absorvendo em si uma tonalidade enjoativa e moderna, sem originalidade, só uma cópia de tudo. Pessoas, no entanto, não eram visíveis de tal altura, não se via mendigos, desempregados, suicidas pendurados em parapeitos ou beiradas de pontes. O município parecia morto visto a distância não transmitindo sinal de vida e nem mesmo sua caótica sinfonia de automotores entupindo as principais avenidas podia ser audível. Visto deste modo, seria capaz de se confundir o cenário observado com os anos após o primeiro estalar de dedos.

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⏰ Last updated: Aug 20, 2020 ⏰

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O terceiro estalar de dedosWhere stories live. Discover now