A Janela da Alma

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"Muitos longos anos entre as árvores
Muitos longos anos no subsolo
Para ser o que nunca foi visto
Aquela que fica e vigia..."

Watching Over
- GRETA VAN FLEET -


"O Mal é um ponto de vista."
- ENTREVISTA COM O VAMPIRO -





Era noite de sexta feira 13 quando Sandra entrou no quarto da avó e a encontrou na mesma posição da noite anterior: esparramada sobre a cama com os braços abertos, mãos retorcidas, pálpebras esticadas; os olhos virados para cima focavam o vazio e enxarcavam os sulcos das olheiras com lágrimas amargas. Naquela noite Gertrudes tossia como se fosse cuspir os próprios pulmões. As paredes do quarto ostentavam filetes de catarro com resquícios de sangue e formavam desenhos monstruosos. Apesar de ver tudo isso Sandra continuava impassível. Torcia para que a morte viesse por sua avó.

Oculto — por entre os galhos de uma árvore — observei Sandra avançar até a cama e pegar o travesseiro. Ela o deixou suspenso sobre o rosto enrugado de Gertrudes e confesso que por um momento imaginei que todo o plano iria pelo ralo. Entretanto, por misericórdia do deuses Sandra desistiu. Jogou o travesseiro ao chão e saiu do quarto. Bateu a porta e desceu as escadas; foi para a sala ligar a televisão.

Até ali o plano corria bem.

Saí de meu esconderijo e alcancei a janela de minha velha amiga. Testemunhei a luz da Lua penetrar pelo vidro da janela e iluminar aquela casca envelhecida; a camisola amarelada cobria a magreza do corpo doente e destacava os ossos que marcavam a pele. A respiração estava pesada, suor brotava na testa. O cadáver sobre aquela cama nem lembrava a Bruxa que minha amiga havia sido. Gertrudes apodrecia a olhos nus. Na época ver aquilo me abalou, mas nada poderia fazer além de observar e admirá-la ainda mais.

Gertrudes ficou entre a cruz e a espada inúmeras vezes. Naquela última, só percebeu que era chegada a hora de mudar quando o Mal de Alzheimer chegou. A Bruxa começou a esquecer coisas recentes como o que comia no café da manhã e lembrar de coisas antigas como a idade em que conjurou Cthulhu pela primeira vez. Certo dia lembrou de quando esteve na Torre de Babel e nas construções das pirâmides egípcias. Quando ela me confidenciou suas aflições juro que não fiquei triste, pois a morte é só mais uma etapa no plano sobrenatural que é a vida. No entanto, ao acordar semana passada com enxofre a inundar o quarto, o chão coberto de larvas e Getrudes abraçada a uma criança degolada vi que o Alzheimer poderia por fim ao seu reinado. Recordar que quase perdi Gertrudes ainda me dá náuseas.

Deixei a janela para trás e voltei para a árvore. Gertrudes começava a se debater quando olhei para cima e vi que a Deusa Lua navegava num oceano de nuvens esfarrapadas. Foi nesse instante que Gertrudes começou a gritar. Segurei meus instintos e apenas apreciei aquela canção sagrada.

Os gritos de Gertrudes traziam a lembrança do som das encruzilhadas, o gosto acre dos pântanos da Louisiana, o aroma de sangue fresco escorrendo das oferendas Astecas e o sabor da profanação numa tonalidade perversa e admirável. O chiado seco e áspero reverberava pela vizinhança como trovões numa tempestade, banhava com arrepios a pele e entupia de êxtase os tímpanos.

Sandra não compartilhava desse prazer sobrenatural. Ela acordou de supetão; os olhos úmidos e esbugalhados refletiam a luz da Tv; um filete de saliva escorria pelo canto da boca e manchava a pele alva da garota. Então veio outro grito e os pés da moça esbarraram no abajur ao lado do sofá. O vaso, presente dado a Gertrudes pelo Rei Nabuconodosor II, caiu sobre o vidro da mesa de centro. Um cinzeiro também despencou e jogou sobre o tapete persa cinzas para mancharem aquela beleza antiga.

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