O COMEÇO I

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 Já vai dar meia noite aqui em Torres Vedras, uma cidade portuguesa no distrito de Lisboa, vim visitar a minha filha que mora aqui há dois anos, a noite de inverno congela os ossos de quem não está acostumado com a temperatura de 0 grau, o céu é um breu, ao alcance da visão algumas lâmpadas de mercúrio dos postes da rua, o barulho prazeroso das águas de um córrego preguiçoso e a uns 500 metros da pra enxergar o cemitério da cidade com sua arquitetura romana, com ciprestes distribuído por todo o campo santo. Entre as árvores pisca uma luz amarela e tênue, uma única luz que se ver naquele lugar, deve ser a luz da casa do vigia, penso, mas que vigia moraria naquele lugar? A luz me chama atenção e me deixa meio que hipnotizado e assustado, a movimentação das árvores faz com que a luz desapareça e retorne, confesso que senti um calafrio, mas a minha mente me conforta e lembra-me que a temperatura naquela hora já está a menos 2 graus, portanto o calafrio justifica-se.

Algo me atrai naquele cemitério, não sei se é pela paz que estou sentindo, creio que causado pelo silêncio, pelo murmuro do córrego, pela escuridão e aquela luz lá longe que me parece chamar para o tempo que já se foi mas que continua presente na lembrança dos meus queridos e amados entes que se foram e os que continuam fazendo parte da minha convivência.

Verão de 1964, acordei com a minha mãe me chamando para tomar café pois estávamos de mudança para outro bairro da nossa cidade, meu pai tinha construído uma casa e pra fugir do aluguel nos mudamos mesmo com ela inacabada, no caminhão já estava quase toda a nossa tralha, a movimentação de homens entrando e saindo da casa carregando objetos era intensa e no nosso café minha mãe nos serviu um pão francês quentinho com margarina e uma xicara de café quente feito no bule e coador de pano, eu e meus irmãos engolimos o mais rápido que pudemos e corremos pro caminhão, íamos na carroceria do Chevrolet 1960 entupido de coisas e entre os móveis meu pai encaixava os filhos. Enfim a partida, uma manhã agradável, a brisa batendo em nossos rostos, o vento assanhando os cabelos, a alegria reinante nos fazia gargalhar de felicidade, estávamos indo para a nossa casa nova. De repente o caminhão para, meu pai desce e pergunta por black o nosso cachorro Pastor Alemão, esqueceram do animal de estimação, minha irmã mais velha entrou em desespero, meu irmão ameaçou pular do carro pra ir atrás dele, mas logo ele aparece lá no fim da rua correndo ofegante em nossa direção e a alegria voltou a reinar, o caminhão volta a sua caminhada, o motorista andando devagar pra que nada caísse na estrada esburacada.

Enfim chegamos, hora de descarregar tudo e começar a arrumação, a casa era aconchegante, tinha três quartos, um banheiro, um terraço grande em L, com armadores nas paredes aliás nos quartos também tinha armadores, família de cinco homens e quatro mulheres incluindo os meus pais precisaria de redes para acolher a todos.

A nossa casa se situava próxima a uma mata, não tinha água encanada nem luz, naquela época fomos os pioneiros da rua e de todo o quarteirão, lugar meio rústico e um pouco hostil, aparecia de tudo, cobras, ratos, insetos e muitos pernilongos que atazanavam o nosso sono, no final da tarde, na hora do rush dos pernilongos, acendíamos fogo com bosta seca de vaca e defumávamos todos os ambientes para diminuir os ataques dos sugadores do sangue alheio.

Seis horas da tarde, o rádio de pilha sintonizado tocando a Ave Maria, hora de pedir a benção ao pai e a mãe, o café quentinho no bule saído do fogareiro de carvão, minha mãe servia a janta, café com pão, o cheiro adocicado do café misturado com a fumaça tornava único aquele aroma, brincávamos no meio da rua até cansar, depois ia todo mudo lavar os pés, escovar os dentes e dormir, naqueles tempos a água tratada era pouca e tinha que ser racionada, banho só se estivesse muito sujo. Lá da minha rede, me balançando, ficava escutando meus pais planejando os afazeres do dia seguinte, dormi um sono profundo e sonhei que estava em um parque de diversões andando num carrossel escutando a difusora tocando as baladas românticas, "sentimental eu sou, eu sou de mais..." sentindo o cheiro doce das maçãs do amor. Minha família era um pedaço do céu.

O dia seguinte da chegada na nossa nova casa começou com chuva carregada de trovões e relâmpagos e muito vento, meu pai colocou a cartucheira de tronco, verificou o seu revólver 38 e colocou no coldre, vestiu o casaco e por cima a sua capa de chuva, ele era policial civil lotado na POLINTER – Policia de Investigação Inter Estadual e também atuava como vigilante de uma agência bancária, já naquela época o policial tinha que ter sempre outra atividade para completar o sustento da família. Meu pai era um homem bonito, alto tinha um metro e oitenta e cinco centímetros, seu cabelo fino e preto penteado pra traz obedecia a química da brilhantina, possuía um bigode fino que seguia a moda da época, de sorriso fácil e muito brincalhão, seus olhos pretos e brilhantes nos transmitia segurança e autoridade, toda noite quando vinha voltando do trabalho, de longe já escutávamos a melodia do seu assobio, nunca esqueci a música "coruja" que ia enchendo aos poucos de alegria a sua chegada em casa, ele se despediu da minha mãe com um beijo, passou a mão na cabeça de cada um dos filhos, pedimos a bênção e partiu, ficamos o observando na estrada pulando as poças de água que se formaram com a chuva torrencial até desaparecer na curva. Era meu herói.

Após a despedida do meu pai a minha mãe voltou para as tarefas de organizar a mobília com a minha irmã e meu irmão mais velhos, o restante da criançada estava liberada pra brincar e fomos explorar os ambientes externos da casa, a chuva tinha dado uma pausa e corremos pro quintal procurando algo que nos distraísse, apenas de calção e descalços criávamos os nossos castelos, represávamos a água que ainda corria devido a chuva e pulávamos dentro, deixávamos a imaginação nos levar pra castelos e cidades nunca vistos mas que nos pertencia.

Hora do almoço, minha mãe preparou um Rubacão com tudo que tinha direito, feijão, arroz, carne de charque, queijo de coalho picado e a nata de leite fresco, tudo misturado conforme a sua receita no caldeirão cercado do calor do fogareiro, o aroma se espalhando por toda a casa e quintal, hora de correr, pegar o prato de ágata que não enferruja nem quebra, encher com aquela comida saborosa e se deliciar até não aguentar, a chuva voltou e o estômago cheio nos convidava ao bom e saudável cochilo da tarde, a chuva caindo, a rede balançando, os olhos fechando.

Minha mãe não parava e nem a chuva a impedia de continuar a labuta doméstica, o rádio ligado tocando "banho de chuva" a deixava esperta e o cansaço não aparecia no seu rosto, lavando os pratos, varrendo a casa, arrumando algum objeto, costurando meia, fundo de calça, pregando botão em camisa, era uma mulher muito bonita, meu pai deu sorte em tê-la como esposa, cabelos lisos e cacheados, olhos verdes, carinhosa com os filhos, exímia na costura não existia roupa que ela não soubesse fazer ou consertar, católica fervorosa sempre que podia ia a igreja. A tarde se aproximava do seu final e ela chamando todos para se banhar pra jantar e aguardar o meu pai chegar, e os dias se passavam como se fosse um só sempre ao som dos ventos nas árvores, dos canários procurando acasalar e dos Sabiás com seu canto relaxante chamando a noite.

Dia de sábado dia de feira, a primeira vez que meu pai me levou, o cheiro de frutas, verduras, mangaios, me encantei, meu pai era o chamado barriga cheia, comprava de bacia, laranja, manga, verduras, banana, jaca de 5 quilos e tudo mais que abasteceria uma cozinha. Certa vez ele comprou um pintinho de granja e me deu de presente, batizei-o de Sansão, era o meu xodó, cuidava dele com o maior zelo, Sansão cresceu virou um galo esbelto com sua plumagem branca cintilante. Era o rei do quintal, meu pai decidiu "encaminha-lo" pra panela sem o meu conhecimento, quando eu descobri o ocorrido desabei em choro cheio de lágrimas, meu pai comovido com a minha dor ordenou que as duas coxas do Sansão fossem destinadas a mim, comi as coxas do sansão soluçando, mas comi.

 E assim nossa vida simples, modesta e feliz caminhava sem percalços, até que um dia como outro qualquer após o almoço, meu pai descansava no terraço tirando a sesta para depois voltar pro trabalho foi acordado com o meu grito. "Pai, Serginho(meu irmão mais novo) tá desmaiado no terreno do vizinho" ele deu um pulo e correu pra socorrer o meu irmão, fui logo atrás, meu irmão estava com o pescoço colado a uma cerca de arame farpado, meu pai tentou puxa-lo e ficou colado a ele, os dois morreram eletrocutados, eu não entendia o que estava acontecendo, só vi o meu pai cair do lado do meu irmão é só, acabou. O vizinho tinha energizado a cerca do quintal dele e não avisou a ninguém. Tinha eu 8 anos de idade.

Depois do sofrimento do enterro tivemos que tocar a vida, perdemos o provedor da família e começamos uma longa jornada de escassez, pobreza e incertezas.

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⏰ Last updated: Jul 02, 2019 ⏰

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