Gaveta

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— Na hora certa eu digo.
— Mas que hora é essa? A senhora sempre diz isso! – ela me olhou e respirou fundo.
— Eu não sei! Não sei o que ele esconde na gaveta. – disse por fim.
Depois disso, foi até o altar e se ajoelhou. Eu fiquei apenas observando, e depois fui me deitar.
No outro dia, pela tarde eu me sentei em frente à sede. Zezé veio e se sentou ao meu lado. Ela parecia estar angustiada com alguma coisa. Eu lhe perguntei sobre o José e ela disse que estava em casa, com a avó.
— É melhor eu te falar logo antes que tu mesma veja. – ela olhava fixamente para o portão.
— O que foi agora? – perguntei.
— É sobre Amaro! Ele… – e hesitou.
— Fala, Zezé!
— Ele tá aqui, Ana! Chegou por volta de meio-dia. Está na fazenda com o pai e uma moça. – eu a olhei, e uma lágrima logo insistiu em correr.
— É… a noiva dele?
— Acho que sim! Eu vi eles saindo do carro. Queria te contar antes, mas quis evitar teu sofrimento.
Eu fiquei arrasada. Chorei quase a tarde toda, e Zezé só tentava me acalmar. O amei tanto. Passava muito tempo orando e pedindo para que Deus o trouxesse pra mim, mas parece que nada tinha dado certo. Todas as preces foram em vão. Meu coração foi partido em pedaços tão pequenos que seria impossível juntá-los novamente. Que dor horrível! Eu me escondia tanto de Zé Leitão quanto de Calango. Não queria que eles percebessem meu sofrimento.
Essa notícia acabou com todas as chances que tínhamos. Como Amaro foi capaz de fazer isso comigo? Eu o esperei todos esses anos e o que ele faz é trazer outra mulher para mostrar o quanto está feliz com ela. Me senti traída. Não só por ele, mas pela madrinha também. Havia tantos segredos em volta de mim que eu já não sei mais se esse é, realmente, o meu lugar.
Nas noites de Santo Antônio dos Soares, as festas continuavam. Eu não queria mais nem sair de casa, não queria mais viver. Mas tive a curiosidade de ir até lá, só para ver de perto. Então saí de casa e, enquanto caminhava, chorei mais uma vez. Cheguei ao portão e, dali, fiquei observando tudo. Procurava, com muita angústia, pelo rosto dele. Foi então que olhei uma moça branca dos cabelos pretos e que usava um vestido rodado, era branco com estampas de flores. Ela andava, cuidadosamente, com uma cuia de tacacá nas mãos, e foi até dois homens que estavam em pé um pouco longe do arraial. Era Seu Ramiro e junto dele estava Amaro. Ele olhava para todos os lados, suspeitei que estivesse me procurando. Então ela o beijou de leve. Várias outras lágrimas correram pelo meu rosto. Era horrível aquela cena.
— Entra, minha filha! – eu ouvi a madrinha dizer.
— Ah! Madrinha! – virei e a abracei, chorando muito.
Então nós fomos andando até dentro de casa. A madrinha pegou um copo com água e me deu, enquanto eu me deitava na rede. Logo depois caí num sono profundo, e só acordei pela manhã.
Já na sede, eu estava estendendo roupas no varal. Ainda estava pensativa e desestabilizada com todo o caos que se tornou a minha vida esses dias. O vento se chocava contra mim e o Sol era intenso. Ao longe eu via uns pássaros voando sobre as matas, como se estivessem sido atormentados por algo.
— Como vai? – ouvi alguém dizer, e vinha lá do portão. Quando virei, tomei um susto tremendo, mas me controlei e virei novamente.
—Não quer falar comigo? – ele perguntou novamente.
— O que tu quer, Amaro? – virei bruscamente.
— Só vim te ver.
— Como tu tem coragem? – as lágrimas queriam descer de novo, mas eu as controlei.
— Eu… – ele abaixou a cabeça. — Eu não te vi na festa com o Zé.
— Pra quê? Pra ti ver? Pra ver tu esfregar na minha cara como eu fui abestada? – e uma lágrima caiu.
— Como assim? – ele fez uma expressão de dúvida e foi chegando mais perto — eu que fui besta pra ti. Decidi fazer o que era melhor, e tu não perdeu tempo.
— O quê? Eu te esperei esse tempo todo, Amaro. Rezei por ti todas as noites antes de dormir por três anos. E tu… – então, a namorada dele apareceu lá atrás, e veio até nós.
— Já está acordado, amor? Nem me chamou. – ela chegou perto dele e eu enxuguei as lágrimas — Olá! Bom dia! – ela disse para mim.
Amaro ficou calado. Ela o chamou para irem tomar café, então eles saíram e voltaram para a fazenda de Ramiro. A essa altura, o pai de Amaro já tinha feito vários processos contra Zé Leitão, por conta da invasão de suas terras. Zé Leitão, por sua parte, estava totalmente enfurecido e tramava alguma coisa muito ruim. Só faltava eu descobrir o que ele estava pensando.
Outro dia se passou. E novamente não fui para o festejo de São João. Mas Zezé veio até minha casa e disse que ele e a namorada também não tinham ido naquela noite. Eu quis esquecer do dia, esquecer de Amaro e até esquecer da vida.
Quando acordei no outro dia, estava decidida a não deixar mais que tudo me machucasse. Tinha decidido também tentar descobrir sozinha os segredos que todos escondiam de mim. É claro que Zezé me ajudou, eu pedi que ela fingisse que tinha se queimado com o café, para que Zé Leitão saísse do quarto sem trancar a gaveta ou deixar a chave lá. E assim aconteceu.
Logo que ele saiu do quarto, eu fui correndo pra lá. Pra minha sorte, a chave estava sobre a cômoda. Eu queria saber por que a madrinha ficou tão nervosa quando falei sobre essa gaveta, a mesma reação que Zé Leitão e Calango tiveram quando cheguei ao quarto no outro dia.
Peguei a chave e coloquei no buraco da fechadura. Vi vários papéis dentro. Tirei todos e os joguei sobre a cama, então vi que havia também uma foto de um casal, e alguns documentos. Foi aí que avistei o meu nome em um deles. Eu não sabia ler direito, mas, ao longo dos anos que passei com a madrinha, nós escutávamos as aulas que tinha no rádio. Por lá nós íamos aprendendo. Era exatamente o meu nome que estava ali. Uma certidão de nascimento. Carlos Emanuel da Rosa era o pai e Ana Lúcia da Rosa era a mãe, e, mais embaixo, Ana Carolina da Rosa era a filha. Eu era a filha. Os outros papéis eram da fazenda, e em todos eles tinha o nome do homem que, na certidão, dizia ser meu pai.
Então aqueles eram os meus pais? Por que Zé Leitão escondia todos aqueles documentos sobre os meus eles? E por que não queria que eu os visse? Eu buscava tantas respostas sobre eles. Mesmo sem os conhecer, os amava e sei que eles sentiam o mesmo por mim quando eram vivos.
— O que tá fazendo aqui, Ana? – ouvi, de repente, e um medo tomou conta de mim.

Uma Prece de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora