Boa leitura.Nunca acreditei que o universo pudesse nos pregar peças. A propósito, nunca imaginei que seríamos vítimas de tamanha crueldade. Inocentes atingidos pelos males de mentes sujas e egoístas nos causam danos permanentes e tendem a causar ainda mais. Estamos perdidos. Perdidos enquanto vivemos uma vida efêmera e que em instantes pode se apagar, ir aos céus com o vento e se misturar na mesma poeira cósmica que nos molda e molda os vilões da história. E eu só sei essas palavras bonitas por que você me ensinou a usá-las.
Ainda me lembro bem do que éramos. Dos anos que passamos juntos e dos planos que fizemos para o futuro. Sonhamos tão grande, mas a guerra nos deixou no chão frio, expostos ao relento e cobertos com o frio sereno das mais frias noites londrinas. Meu coração ainda bate com dor quando me lembro da época em que éramos livres e felizes. Quando não tínhamos preocupações e quando as bombas não atingiam nossa casa.
O triste som das pessoas gritando pelas ruas era ensurdecedor. O barulho das bombas alemãs rasgando os céus gelava minha espinha e os corpos encontrados nos destroços de casas e prédios era mais do que minha mente podia suportar. Eu precisava de você, Scott. Sempre precisei e ainda preciso.
A falta de luz se fazia presente. Era costumeiro apagar todo foco luminoso da cidade no começo de um bombardeio, já que não poderiam acertar aquilo que não fosse possível se ver; mas mesmo assim as bombas caiam e nos atingiam. Éramos como lesmas presas em uma caixa escura de papelão, esperando que nossos malfeitores jogassem o sal em nossas peles gosmentas e sensíveis. Não passamos de lesmas fracas e asquerosas aos olhos deles, e não nego que talvez esse seja realmente nosso destino: uma gosma resultante de um amontoado de lesmas mortas e secas.
Minhas mãos tremiam ao segurar entre os dedos esguios um pires, com uma única vela acesa e colada em sua própria cera. O quarto empoeirado estava escuro e as paredes estavam mofadas e aos pedaços. Na parede a minha frente, ainda de pé e pendurado por um prego torto e enferrujado, jazia um retrato. Um retrato onde a luz alaranjada da vela permitia minha clara visão e fazia meu coração bater mais rápido. Era o nosso retrato. Nosso último retrato. Feito semanas antes de você ser mandado para a guerra.
Sua mão pousava suavemente na minha cintura. Seus braços eram fortes e suas veias saltadas. O terno que você usava caia perfeitamente em você, o deixando completamente irresistível. Seus sapatos recém haviam sido lustrados apenas para aparecer nesse retrato. Seu chapéu fazia seus cabelos escuros caírem um pouco sobre os olhos e seu rosto mantinha o sorriso mais bonito que eu já vi em toda a minha vida. Você era a coisa mais preciosa que eu tinha, e nada me fez superar.
O vestido amarelo que eu usava ia até minha canela e seus detalhes brancos estavam começando a ficar velhos e beges, mas eu amava aquele vestido. Meus sapatos eram brancos e meus cabelos estavam soltos e volumosos. Era isso o que éramos. Perfeitos um para o outro. A mais bela combinação de poeira cósmica que já fora feita pelo mais divino dos seres místicos e cósmicos. Éramos assim.
Minhas pernas tremeram quando eu senti um sopro na minha nuca. As lágrimas ponderaram em sair rolando dos meus olhos e se aventurarem no meu rosto sujo de graxa e poeira. Observei o vidro trincado do retrato e desejei que, apenas por um instante, as coisas pudessem ser diferentes.
Me segurei para gritar quando escutei sua voz novamente. Ela era baixa, mesmo que parecesse surgir de trás das minhas costas largas. Suas palavras eram indecifráveis e tudo não passava da saudade gritando mais alto do que eu poderia aguentar e esconder. Mas dessa vez parecia diferente. Dessa vez parecia ser você.
Relutei em olhar para trás. A janela quebrada deixava o clarão as bombas caindo entrarem e iluminarem o ambiente. Apenas minha sombra foi refletida na parede e eu tive certeza de que realmente estava sozinha. Eu não aguentava mais estar sozinha.
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Nosso Último Retrato - Conto
RomanceIsla estava sozinha. Havia perdido todos que amava e, em pleno bombardeio alemão, decide voltar até os destroços de sua antiga casa, onde residia as lembranças de sua vida refletidas no último retrato que ela tirou com seu marido, pouco antes do jov...