Amor de mãe

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__Nós estávamos jantando quando vocês chegaram. Eu tinha feito um ensopado de carne de caça, que meu marido havia comprado aquele dia mesmo. Nossa casa, não era das mais afastadas da vila, então presumi que vocês haviam matado os guardas, derrubado os muros ou feito qualquer coisa do tipo. O que eu me lembro de ouvir, foi o estouro dos trincos das portas., o que me lembro de ver, foi aquela criatura monstruosa, um bugbear com uma vez e meia a altura de meu finado marido, e o machado cortando o ar.

As outras mães concordam com as cabeças, seu semblante severo e seus olhares impiedosos.

__Depois de ver o amor de minha vida, o pai de meus filhos tombar sem vida, eu tentei gritar para que eles corressem, se escondessem... mas era tarde. A dor lancinante em minhas costas, o som de minhas costelas partidas e meus pulmões esmagados fez com que me engasgassem com meus cuidados de mãe. Pela janela, eu via o rosto de Tenebra, então supliquei a ela em meu último pensamento:

"Não deixe que levem meus filhos! Por favor! Você também é mãe!"

Outra guerreira se adianta, sacando sua adaga e fazendo mais um corte profundo na carne macia daquele traficante de escravos.

__Foi a oração de todas nós... pedimos com tanto amor, que ela ouviu. Acordamos algumas noites depois, sob os primeiros raios de sua luz.

Uma terceira mãe se adianta, pega uma flecha e perfura o corpanzil do Sulfure.

__Choramos a noite toda, com nossos gritos ecoando em outras casas. Uma vila inteira, mais de cinquenta famílias destruídas, todos os homens, mulheres e idosos mortos. Nossos jovens, levados. Quando nossos prantos secaram, quando cessamos de chamar, gritar pelas crianças, procurar em seus esconderijos, nos celeiros e no bosque, nos demos conta de nossa situação. Estávamos semi-nuas. Os golpes de machados, espadas e adagas haviam estourado nossas roupas, mas mais do que isso, haviam arrancado parte de nossa carne.

Mais um golpe, outra mãe segue o fio da história.

__Olhando ao redor, reconhecíamos nossas vizinhas: amigas, desafetos, parentas... todas... feridas. Roubadas. Ultrajadas. Sentindo uma dor tão profunda que nossa carne não era capaz de aguentar.

A palavra é passada novamente, assim como a adaga:

__Mas nosso amor também era maior do que tudo. Diziam que os mortos nada sabem, diziam que eles não podem sentir, chorar, amar... por falta de carne? Um choro é muito mais do que lágrimas, um sofrimento é muito maior do que sangue. E o amor... ah, o amor sustenta os ossos de uma mãe.

Outras mães se aproximam, ávidas por despejar-se sobre os sequestradores que haviam restado. Diante de sua fúria, os mais de oitenta iniciais foram reduzidos a menos de uma dúzia... Mas teriam que bastar para todas.

__Mas o cheiro de nossos filhos foi marcado por Tenebra. Conseguimos achar sua trilha e seguimos em seu encalço, sem parar, sem descansar, com a vegetação fechada, a tempestade, o sol e as pedras arrancando nossas fraquezas, nossa carne. Depois de semanas em seu encalço, achamos seu acampamento, como vocês veem. E em menos de uma hora, pegamos nossas crianças de volta.

Uma mãe se aproxima com uma tocha:

__Agora, meu querido, queremos só uma coisa para podermos terminar de matar vocês, de forma rápida e depois queimar seus corpos até as cinzas: Quem encomendou esta leva de escravos?

Um grito foi ouvido no interior de outra rodinha de mães:

__Seu amigo centauro não quis falar... Igual ao tritão. Matamos ele afogado... com óleo.

O filho de demônio a fitava com o olho que ainda tinha, metade de seu rosto desfeito em uma ferida de batalha, suas pernas e braços quebrados, suas asas cortadas e respirando rapidamente, sentido o alcatrão da fumaça entupir suas narinas. Ele faz um sinal negativo com a cabeça.

__Olhe bem, querido! Seus amigos estão sendo queimados... Quer um destino mais cruel? Prefere ser atirado de um penhasco como o meio-elfo? Pendurado na torre como o bugbear? Ter seu couro deixado para secar ao sol? Confie em mim, eu acertaria esse seu coração mole com esta adaga em um golpe só. Eu matava porcos quando ainda era pequena. Mas se quiser ficar calado, faço questão de eu mesma te esfolar.

A adaga desliza fria em seu couro, deixando uma linha de sangue superficial. Chegando na altura do peito, é enfiada até o cabo, diretamente em seu pulmão.

__Se eu deixa-la aí, vai doer durante três dias antes que você morra. Se me contar o que eu quero, Puxo ela e você se vai... para a terra dos sonhos em dois minutos.

O Minotauro aceita aquilo. As fogueiras abastecidas com seus amigos traziam o cheiro de carne queimada e isto era tudo que ele não queria.

__Maverick. Carlos Maverick, de Ahlen. Ele encomendou trezentas crianças, estava com os papéis prontos e iria vende-las para Tapista com documentos falsos. Mas eu juro! Eu só fiz o que mandaram!

Os olhos daquela mãe pulsam brevemente, ela se levanta, deixando a adaga ainda estocada no peito do inimigo, se vira para outra mãe e fala:

__Antônia, eu te ordeno que queime-o em fogo baixo, para que seus gritos drenem a coragem que ainda resta aos seus comparsas.

Ela se vira para ele, com o que deveria ser um sorriso, agora traduzido em um pulsar mais forte e febril de suas órbitas oculares:

__Ah, querido! Não se preocupe! Ela está só cumprindo ordens...

A rodinha de mães se desfaz, enquanto Antônia joga óleo e smokestone sobre o sequestrador. Seus gritos duram vários minutos, até que ele desfalece.

__Carlos Maverick, de Ahlen. Os documentos eram verdadeiros, meninas.

__Vamos para Ahlen? Pergunta outra mãe:

__Ainda não. Temos que cuidar de nossas crianças.

__E como faremos isto, agora que fomos reduzidas a... isto? Ela espalma suas falanges contra a luz da lua.

__A deusa sabe. Ela nos guiou até aqui, ela cuidará de nossos filhos.

Depois de pegar as crianças e suprimentos para a viagem, ainda assustadas demais para entenderem o que se passava, as mães seguiram para a capital, onde um clérigo de Tenebra foi trazido por uma das crianças, convencido do problema e aceitou os filhos da noite como incumbência.

Em uma semana de estrada, muitas delas já viam suas mães com o mesmo olhar de antes da tragédia e não quiseram se afastar delas.

Algumas mães não poderiam suportar a perda de seus filhos... mas amor de mãe é maior que a morte.

Tormenta 20 Meus ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora