Cena de Crime

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As lampadas amareladas piscaram algumas vezes e se apagaram. Havia apenas a luz da lua cheia e das estrelas iluminando a rua.

Dália quase tropeçou num buraco da calçada. Abaixou-se e massageou as coxas, doloridas pelo esforço. O problema de formação com o qual nasceu não era capaz de impedi-la de seguir uma boa notícia, mas era inegável que aquilo a atrapalhava muito. Doloroso, mas não tanto quanto se sentir incapaz. Aquelas calçadas eram tortas. Seria difícil para qualquer um, mas especialmente para Dália.

Tudo que conseguia ouvir eram seus passos. O silêncio era absoluto, sem cachorros de rua ou gatos perambulando pelos muros quebrados. Por instinto, levou a mão até a sua câmera e a deixou ali. Precisava garantir que ninguém a roubaria. Era um medo irracional, sabia disso. Não tinha ninguém ali. Mas o escuro e o silêncio trazem a tona medos irreais.

Foi difícil encontrar a casa certa, mas não identificá-la. A faixa amarela da polícia celava as entradas. Uma placa grande na porta:

CENA DE CRIME. MANTENHA A DISTÂNCIA.

A casa era incômoda. Dália franziu os lábios. Algo naquela construção a fazia querer correr para longe e destruir tudo, ao mesmo tempo. A câmera queimou em sua mão. Precisava da notícia. Pulou a cerca de metal, sem nenhum arranhão. Em compensação, os músculos das pernas queimaram outra vez, com o impacto na terra seca. Precisava entrar, tirar fotos, investigar. Depois, sairia e andaria até o final da rua, onde pegaria um táxi. Não era tão difícil. Qualquer pessoa conseguiria. Ela conseguiria. Pular a janela foi mais fácil. Estava perto do chão, perto demais. Parecia mais uma entrada para gatos do que uma janela. Atravessou o cômodo, passando as mãos enluvadas na parede até encontrar o interruptor.

A casa era tão incômoda por dentro quanto por fora. Tirou uma foto da cozinha, mas sabia que era inútil. Não se parecia em nada com uma cena de crime. Não se parecia com um lugar onde uma família foi assassinada. O pensamento a fez rir sem graça. Nenhum lugar seria adequado para a morte de uma família. No entanto, a sala de estar se parecia com o cenário de um filme b de terror. Tampou o nariz com a mão esquerda e com a direita tirou fotos. Sangue na parede, cheiro de carniça. A mesa de centro desfeita em cacos de vidro espalhados pelo piso. Quase esperava ver um corpo desfigurado, com a expressão retorcida num último grito de desespero. A banheira parecia estar cheia de sangue. A água era de um vermelho fraco. Considerou duas hipóteses, que fizeram deu estômago revirar. Na primeira, alguém foi morto na banheira. Na segunda, o assassino se banhou. Ah, mas era muito sangue. Sua mente estava viajando, deduzindo o que havia acontecido. Seus dedos ágeis registravam cada detalhe. Esqueceu até mesmo a dor nas pernas. Olhou para as paredes, para o chão. Parecia estar num açougue. Um calafrio percorreu seu corpo e ela se abraçou. Viu de soslaio uma sombra correr do seu lado. Na cozinha, uma panela caiu no chão e o tilintar ecoou no silêncio da noite, tirando Dália do transe.

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Cléo apertou F5 pela terceira vez em menos de um minuto.

Deu um grande gole no café já frio e sem açúcar. O sabor já não era do seu agrado, e quanto mais frio ficava, mais amargo descia. No entanto, o trabalho de jornalista — e a vida adulta no geral — exigia que tomasse o máximo possível daquilo, para se manter alerta. Apertou F5 outra vez.

Dessa vez, um e-mail. Era Dália. Sua melhor amiga naquele meio, colega de trabalho e com sede de notícia. Não havia alguém mais apaixonada pelo trabalho do que ela. Cléo, no entanto, se sentia mais obrigada do que apaixonada. O salário não era essas coisas, e correr por aí atrás de notícias era cansativo. Foi legal nos primeiros meses, não podia negar, mas depois disso, não compensava tanto. Estava chegando aos trinta e mal tinha dinheiro para bancar um apartamento sozinha — morava com Dália.

ASSUNTO: ABRA AGORA.

“Eu sei o que você disse, eu sei que eu não deveria. Mas eu vim.”

Não era preciso especificar. Era melhor deixar no sigilo, nunca se sabe quando pode entrar numa encrenca por conta desse trabalho. Olhou para o relógio. Duas da manhã. Cléo massageou as têmporas, como se o gesto fosse fazer Dália criar juízo. Uma família havia sido brutalmente assassinada. A polícia local tentou abafar o caso, segurar os repórteres por um tempo. Mas Dália nunca gostou de esperar. Quase conseguia ouvir a voz dela dizendo que reportagem boa é reportagem exclusiva. Se conseguissem muitos cliques, poderiam receber um bônus.

“É pior do que eu imaginava. Muito, muito pior. Você vai adorar. Estou chegando. <3 ”

Cléo minimizou a tela e retornou para sua fofoca de famosos. Era uma matéria horrível, não traria muitos cliques. Mas a repercussão de um assassinato… Quase considerava a ideia louca de Dália. Ouviu o clique da porta. Assim que entrou, as pernas cederam e a mulher caiu no chão.

— Você sabe que não deve fazer essas coisas.

— Valeu a pena, querida! Acho que temos uma matéria.

Cléo apoiou a colega e a levou até o sofá. Pegou alguns analgésicos na bolsa e um copo d'água.

— E aí, o que temos?

— Assassinato. Mas não foi qualquer assassinato. Temos aqui um Jack Estripador do século 21. Se conseguirmos mais informações… Caramba, danem-se os cliques! Vamos entrar pra história!

— Quer um café?

— Você está ouvindo o que estou dizendo? Tá, olha, vamos do começo. Isso foi brutal. Cléo, estamos falando de uma banheira de sangue. No sentido literal, mesmo, uma banheira cheia de sangue. Tem sangue no teto, nas paredes, no chão, como se… Como se os corpos tivessem sido arrastados.

Cléo fez uma cara amarrada e cruzou os braços.

— Não, arrastados não... Melhor. É como se a sala fosse uma máquina de lavar, e os corpos fossem as roupas, batendo de um lado para o outro e o sangue voando!

— Pode parar de falar essas coisas? Falar como se o assassinato de uma família fosse a melhor coisa que já lhe aconteceu?

— Desculpe. Mas é a melhor coisa, sim. Os cliques! O dinheiro… Olha, tudo bem. Se não quiser fazer isso, faço sozinha. Mas pensa bem, tá? Vou ir pra cama. Passa as fotos para o computador e admire.

Cléo se sentou em frente ao computador. Olhou para a matéria que estava escrevendo. Lixo. Dália estava certa, e ela odiava admitir. O público tinha um apetite sádico que precisava ser saciado. Era por isso que o sensacionalismo sempre atraia atenção. Pegou o cabo, que estava com mal contato, e passou todas as fotos para o computador. Era brutal. Era sádico.

Uma máquina de lavar com corpos dentro.

Seu estômago se revirou. Era horrível, sim, tão horrível que seus olhos não conseguiam se desgrudar da tela. E o público também não conseguiria.

Pensou em algo que sua mãe sempre dizia: Três coisas não podem se esconder. O sol, a lua e a verdade.

O Homem TortoOnde histórias criam vida. Descubra agora