Dedos Tortos

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As batidas na janela eram insistentes.

Cléo se revirou na cama e tentou abafar o som cobrindo as orelhas com um travesseiro. Dália dormia profundamente ao seu lado, o som não a incomodava. Resmungou baixo e afundou o rosto na cama, ainda sonolenta. Estava ciente das coisas do seu redor, mas não se lembraria daquilo no dia seguinte. Encontrava-se presa num ponto entre o sono e a realidade. Justificou o barulho irritante como pássaros ou talvez crianças jogando pedras. O relógio marcava três e quarenta da manhã. Se estivesse completamente desperta, saberia que suas suposições eram completamente absurdas. Meio acordada e meio dormindo, foi como ficou até o sol nascer. Quando a claridade se fez no quarto, Cléo levantou-se ainda cansada e deixou Dália dormir. Sabia que não conseguiu dormir como deveria nessa noite, apesar do cansaço que sentia, mas não se lembrava do motivo. Apesar do barulho, Cléo não abriu os olhos nenhuma vez. Se os tivesse aberto, saberia que não eram pedras ou pássaros. Eram dedos tortos e duros como os de um cadáver.

E estavam do lado de dentro.

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Mais tarde, Dália encontrou-se com Luther pelo que poderia — e as chances eram bem altas — ser a última vez. O homem falou sobre o quanto as séries policiais eram pura fantasia e sobre os seus colegas de trabalho — colegas, pois nenhuma vez sequer se referiu a eles como amigos—, mas não disse nada relacionado com os assassinados. A essa altura, Dália estava roendo as unhas, se contendo para não puxar o assunto. Disse para si mesma várias vezes que a melhor forma de conseguir uma informação era fingindo que não a queria, ainda que demorasse. Só que ela não tinha todo o tempo do mundo. Precisava de uma matéria. Assim que o policial foi ao banheiro, Dália agarrou-se ao celular dele como um predador devorando uma presa, e digitou a senha que já sabia há algumas semanas. Foi bem mais fácil do que pensava que seria. Só tinham mensagens dela e de alguns colegas de trabalho. Encontrou o endereço e repetiu três vezes para si mesma a fim de memorizar. Quando ele retornou, Dália despediu-se rapidamente e colocou o endereço no GPS do celular. Dirigiu rápido, de maneira quase imprudente, e chegou no seu destino, o que não resultou em muita coisa. A mulher bateu a mão no volante ao ver a casa cercada de repórteres e amadores tentando tirar fotos. Dália tentou por poucos minutos, mas concluiu que seria inútil.

— Que se dane.

Dália entrou no carro e acelerou. No caminho, atravessou três faróis vermelhos e quando chegou no quarto farol, o congestionamento a impediu de ultrapassar. 

— Droga, droga, droga...

Apanhou o celular com a mão livre e ligou para Cléo, que atendeu com uma voz sonolenta e preocupada.

— Cléo, vou confiar a matéria à você, tudo bem? Sem revisão, sem ajustes... Só… Olha, aquela merda daquela casa estava cercada de repórteres e por isso, cheia de policiais. Não consegui entrar. Eles estavam tentando uma entrevista, mas duvido que aqueles oficiais vão abrir a boca. Já temos a matéria pronta. Vamos apenas citar o segundo assassinato na Rua das Flores e deixar um questionamento sobre um novo assassino em série. Eu já estou chegando. Mas nós temos que ser as primeiras.

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Cléo jogou as cobertas para o chão e largou o celular no sofá antes mesmo que Dália encerrasse a chamada. Digitou o resto da matéria com pressa, mas recusou duas vezes para garantir que não havia escrito besteiras. Escolheu algumas imagens mais chocantes e publicou junto com a notícia. Era oficial agora, estava feito. Tinham sido as primeiras. Sentiu percorrer por suas veias uma adrenalina que há muito tempo não sentia. Poderia dar pulinhos de alegria. Por isso, separou uma garrafa de espumante, que dividiria quando sua amiga chegasse.

Quando ela chegou, não tomou mais do que dois copos. Assim que terminou o segundo, o celular começou a tocar. Uma chamada de vídeo, de Luther. A ideia de recusar a chamada sequer passou pela sua cabeça, já estava um pouco alterada pois sempre havia sido fraca para álcool.

— Oi, Luth!

— Você tem noção do que você fez? Você pensa no que faz, Dália? Droga! Droga!

Os olhos dele estavam tristes, afundados em olheiras pesadas e roxas, como de quem não dormia a dias.

— O que eu fiz? Uma notícia! Uma verdadeira notícia. Todo mundo está compartilhando e você sabe o quanto de dinheiro nós…?

— Ah! Dinheiro, dinheiro! O preço que você vai pagar por isso vai ser maior, ah se vai, bem maior. Você deu a ele tudo que ele queria!

— Dou, meu amor, e vou dar muito mais! É fama que ele quer? Bem, eu também! Vou realizar o último desejo desse pobre coitado.

— Você já conseguiu. Agora todo mundo sabe. É tudo que ele precisa.

— Uhum… Mais alguma coisa?

Cantarolou com uma voz rouca.

— Eu vi um homem torto que andava sem parar...

Aquela foi a última vez que ouviu a voz de Luther

O Homem TortoOnde histórias criam vida. Descubra agora