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          Ganhando o corredor a passos cada vez mais largos, o estranho homem me levou até a porta do penúltimo quarto. Enquanto eu analisava o fato de que faltava o algarismo central do número da porta ele me disse com aquela voz inquietante, que me incomodava cada vez mais, para abrir a porta do quarto 3_8. Ao tocar a maçaneta pude sentir pequenas vibrações, curtas e rítmicas. Repetitivas. Não demorou muito para que eu recuasse assustado. O surgimento de um sorriso no rosto do gerente foi quase audível. Repetiu:
— Vamos, pode abrir.
Mesmo desconfiado de que alguma coisa ruim estava prestes a acontecer, estendi novamente minha mão em direção à maçaneta. Sem um segundo de hesitação, a agarrei e girei lentamente. Um empurrão e a porta se abre, escancarando uma cena que ficará gravada nos confins da minha mente até o dia da minha morte. Talvez até depois disso. O quarto era a materialização do caos. Uma lâmpada que piscava incessantemente iluminava uma cama que parecia ter sido arremessada contra a parede que, por sua vez, apresentava verdadeiras cicatrizes, que presumi serem marcas de arranhões.  Manchas de sangue permeavam todo o recinto e um cheiro muito forte exalava de um dos cantos do quarto. Algo parecia podre por ali, e eu logo descobri o que era.  Em um canto no fundo do cômodo estava a explicação para as pequenas vibrações que senti ao tocar a maçaneta da porta pela primeira vez. Ali ajoelhado, e batendo sua cabeça continuamente contra a parede, encontrava-se o hóspede do quarto 3_8. Diante de si delineava-se um curso de sangue que descia em linha reta, partindo do ponto em que sua cabeça se encontrava com uma força incomum com a parede.
Examinei a estranha figura por alguns segundos e percebi que alguns de seus dedos ensanguentados não dispunham mais de unhas, o que confirmava minha teoria sobre os arranhões nas paredes e explicava as manchas de sangue. Não tinha muitos cabelos na cabeça, apenas pequenos pontos apresentavam poucos fios, que ainda esperavam para serem arrancados. O ser – pois não conseguiria dizer com certeza que aquilo era realmente uma pessoa - era de uma magreza ímpar mas, independente disso, conseguia fazer com que o quarto inteiro vibrasse com a força com que batia sua cabeça contra a parede. Depois dessa breve análise pude perceber que ele balbuciava algo enquanto praticava sua autoflagelação. Dei alguns passos para dentro do quarto, porém não o bastante para compreender as palavras que saiam da boca daquela criatura. Ainda sem entender o meu impulso repentino de me aproximar daquilo, continuei andando a passos curtos. Quanto mais perto chegava, mais nítidos se tornavam os sons que aquele ser emitia.
— Eu...
— Eu quero...
Um pouco mais próximo.
— Eu...
Quando percebi já estava a centímetros de distância, do que finalmente constatei ser um homem. E pude notar que ele repetia a mesma frase e não parecia parar nem para respirar.
— Eu quero sair daqui.
— Eu quero sair daqui.
— Eu quero sair daqui.
E assim foi, durante os longos segundos em que fiquei parado observando aquela cena.
— Eu quero sair daqui.
E batia a cabeça contra a parede.
Um filete de sangue saía de sua testa a cada golpe, tingindo de vermelho a parede que um dia fora branca. Descendo por sua testa, nariz, boca, queixo e pingando lentamente no chão.
— Eu quero sair daqui.
Aquela situação era desconcertante.  A loucura daquela pessoa me incomodava profundamente. Não o suficiente para que eu sentisse vontade de ajuda-lo, mas eu realmente queria que aquilo parasse.
— Eu quero sair daqui.
— Pois saia, a porta está aberta.
Nenhuma reação.
— Eu quero sair daqui.
— Então se mexa! Saia logo daqui.
As batidas ficaram mais intensas.  O som da cabeça do homem se chocando contra a parede tornou-se ainda mais alto. Por um instante meu olhar se volta para o gerente do hotel, ainda parado junto à porta atrás de mim.
— Eu quero sair daqui.
Seu sorriso, que agora mostrava infinitas fileiras de dentes pontiagudos, parecia maior do que nunca. Sequer piscava, como um corvo empoleirado em algum galho solitário, observando a podridão do mundo que o cerca. E gostando do que vê.
— Eu quero sair daqui.
Minha paciência se esgotara e aquela cena me trazia uma agonia indescritível.
— Saia logo daqui. A porta está aberta. Não é isso que quer? Sair deste quarto?
— Eu quero sair daqui.
Alguma coisa mudou. Agora o homem balançava a cabeça de um lado para o outro enquanto levava a cabeça em direção à parede. Parecia fazer sinais negativos com a cabeça. Mas o mantra continuava.
— Eu quero sair daqui.
— Mas a porta está aberta. Se não é deste quarto que quer sair, então de onde, pelo amor de Deus?
Foi o que eu disse enquanto, por impulso, aproximei minha mão do ombro daquele estranho homem. Um movimento praticamente instantâneo e minha mão para, congelada, junto com o resto do meu corpo. O homem agora olhava para mim com um rosto devastado, que misturava agonia, desespero e o medo mais sincero que já tive o desprazer de presenciar. O sangue ainda escorria de sua testa, e sua expressão não mudou em nada quando sua mão direita começou a se levantar lentamente. Sem tirar os olhos de mim por um segundo sequer, o homem apontou o dedo indicador, e em lentos movimentos o posicionou ao lado de sua cabeça.
— Eu quero sair daqui.
Desta vez pude sentir uma entonação diferente em suas palavras. E então tudo fez sentido. O que era ainda mais perturbador. Pude olhar seus olhos diretamente, e uma aflição esmagadora tomou meu corpo. Suas pupilas se moviam em uma velocidade que eu nunca poderia acompanhar, mesmo que tentasse. A luz continuava oscilando e a cada momento em que o rosto do sujeito era iluminado suas pupilas se encontravam em outro canto de seus globos oculares, às vezes até mesmo em direções diferentes. A cena me aterrorizara de tal maneira que permaneci ali, imóvel.
Diferente de mim, ele se mexia.
Assisto à lenta ascensão da criatura em meio aos piques de luz. Com extrema dificuldade conseguia se levantar, e em meio a espasmos cada vez mais violentos pôs-se em movimento. Era difícil enxergar com a falha da iluminação, mas assim que meus olhos se acostumaram à constante permutação entre luz e escuridão pude vê-lo arrastar seu corpo cadavérico na minha direção perfeitamente. Suas pernas tortas conduziam os passos mais perturbadoramente desajeitados que eu já havia visto. Cada movimento, por mais insignificante que fosse, era correspondido por um estalo vindo de seu próprio corpo. Parecia que aquilo não se movia há anos. Conforme a criatura arrastava seus pés pútridos pelo chão do quarto, seus movimentos se tornavam mais ágeis e naturais. E, consequentemente, mais barulhentos. A essa altura aquele som de estalos, que só fazia aumentar em frequência e volume, já levava o pouco de sanidade que me restava. Observo, impotente. Posso enxerga-lo perfeitamente, parado a menos de cinco centímetros de mim. Um corpo esguio, curvado, apoiado por pernas trêmulas que poderiam facilmente ser confundidas com os galhos retorcidos de alguma árvore morta. Os braços pendurados, que antes descreviam um movimento pendular enquanto a criatura andava, haviam cessado qualquer tipo de movimento. Já os dez dedos de suas mãos agora se moviam freneticamente, causando versões discretas dos estalos que ouvi quando começara a se mover. O cheiro havia piorado. Sua boca, agora aberta como se lutasse para falar algo muito importante, exalava um odor horrível. Fedia a vômito, sangue há muito seco e algo que não pude identificar, mas tinha algo mais naquele cheiro. O rosto desfigurado já estava quase se encostando ao meu quando pensei em fugir. Pensei. O sangue parecia ter escapado de minhas pernas quando tentei o primeiro movimento. Girei o corpo de uma só vez, mas as pernas não obedeceram. Caí pateticamente. Olhando de baixo o homem parecia gigante. E de cima ele continuava olhando fixamente para mim. Os piques de luz se tornaram mais longos, agora a luz se mantinha acesa e apagada por intervalos maiores. Porém tudo pra mim parecia estar em câmera lenta, enquanto a criatura se curvava para aproximar seu rosto do meu novamente. A cada centímetro o movimento de suas pupilas se tornava mais frenético. Por instantes pensei que seus olhos fossem saltar das órbitas. Agora já era possível sentir sua respiração ofegante, o ar quente que ele exalava encontrava meu nariz numa das piores sensações que eu já havia sentido.
E eu continuava hipnotizado pelo movimento daqueles olhos horrendos. Seu nariz quase se encostando no meu. E eu só conseguia pensar no quanto eu queria estar fora daquele quarto. De repente os piques de luz pararam, a luz havia se apagado completamente. A única fonte de iluminação que me restava era a lâmpada incandescente do corredor, que jogava um feixe de luz alaranjada na escuridão do quarto. A pouca iluminação ainda me permitia ver perfeitamente aquilo que tanto me ameaçava. Assim como a silhueta do gerente, que presumi ainda estar parado bem atrás de mim, não oferecendo qualquer tipo de ajuda. Como um abutre, esperando a minha dilaceração para se banquetear com os restos. Quando minha atenção, momentaneamente dispersa pela presença do desprezível gerente do hotel, se voltou para o que realmente importava, eu finalmente pude ver. Perdi o ar por um segundo. Meu corpo se tornara gelado como uma lápide de mármore. Uma gota de suor frio desceu pela minha têmpora esquerda, passando por todo o meu rosto, imergindo na gola da minha camisa. Seus olhos haviam parado. O movimento perturbador daqueles olhos maníacos havia cessado, dando lugar a pupilas extremamente dilatadas que expunham o verdadeiro conteúdo da expressão daquele homem.
Nada.
O vazio daquele olhar me deixou tão desconfortável que por um instante eu achei que meu corpo iria se mover sozinho. Minhas pernas recobrariam a força e eu saltaria para fora daquele quarto de hotel e nunca mais teria que ver aqueles olhos demoníacos novamente. Mas isso nunca aconteceu. Meu corpo continuou dormente, ignorando meus comandos. E eu continuei ali, encarando aquele olhar, profundo e sem significado algum. Mas tinha significado. E logo, iria fazer todo sentido. O rosto nefasto começou a se afastar lentamente à medida que uma mão aberta se aproximava do meu rosto. A palma imunda daquela mão ameaçava cada vez mais entrar em contato comigo, e eu não entendia o que estava acontecendo. Só podia esperar pelo momento em que aquela mão pútrida repousaria sobre o meu rosto congelado. Não conseguia me mover. Aquela criatura poderia arrancar meus braços e pernas ali mesmo e eu não ofereceria resistência alguma. Já havia aceitado meu destino, qualquer que fosse. Minha visão escurecia à medida que a mão se aproximava. Em meus últimos segundos pensei no motivo de eu estar naquele lugar. Não me lembrava. Me despedi da vida nos últimos instantes antes do contato. Mas afinal, o que havia para se despedir?
Escuridão.
Aquela mão era muito mais quente do que deveria ser. Tive a impressão de que o encontro daquela palma com o meu rosto poderia causar uma séria queimadura. Por alguns segundos não enxerguei nada. Tudo era de uma escuridão sem precedentes.
“Tudo”.
Tudo virou nada em tão pouco tempo que quando comecei a enxergar de novo achei que havia morrido e chegado, finalmente, ao paraíso. Me enganei duas vezes. Uma por pensar que eu, quando morresse, iria para algum tipo de paraíso idealizado pela fé cristã, cujos ensinamentos haviam servido de base para minha criação. E a segunda por pensar que aquilo diante de meus olhos seria o paraíso. Era o contrário. Eu estava sentado, aparentemente com as mãos amarradas nas costas, meu rosto doía muito e um barulho agudo incomodava meus ouvidos. Eu não sabia o porquê. De repente um estrondo, um barulho abafado e meu corpo se projeta para a esquerda, sem sair do lugar. Agora eu entendo a dor. Acabara de levar um soco. O mais forte da minha vida. Conseguia ver quase que perfeitamente meu agressor, exceto o seu rosto. Os socos continuaram vindo, cada vez mais fortes, e a cada impacto eu sentia minha consciência se esvaindo. Mas eu nunca desmaiava.
— Não vá desmaiar ainda.
Outro soco. Pela primeira vez ouvi sua voz. Nada familiar. Não poderia mesmo reconhecer voz alguma com o chiado em meus ouvidos, provavelmente provocado pelas pancadas. Deus, como o meu rosto doía. Ainda não entendia absolutamente nada. Onde eu estava? Quem era aquele homem? Por que ele me batia? O que aconteceu com o quarto 3_8? As perguntas pareciam infinitas. Outro soco. Dessa vez no queixo. Sinto minha mandíbula se partindo. A dor é excruciante. Outro soco. Nariz quebrado. Outro soco. Três dentes se vão. E enquanto eu me pergunto por que eu ainda não desmaiei, a voz retorna:
— Está doendo? Não o bastante. Não é o suficiente. Ainda não.
A voz ficava cada vez mais clara. Até demais. Um barulho de correntes se agitando interrompeu meu raciocínio. Assisti enquanto meu torturador as dispunha em volta dos nós de seus dedos, como um soco-inglês. O homem levou lentamente sua mão enorme até o meu rosto. Eu pude sentir o gosto do aço quando seu punho, envolto pelas correntes, encostou-se à minha boca. De repente lançara seu braço para trás. Sua mão, já atrás da cabeça, preparava o soco mais forte que eu iria receber na minha vida. E aquilo teria me matado de medo, se não tivesse ouvido sua última frase.
— É isso que você merece.
Naquele último momento, eu finalmente reconheci aquela voz. Era óbvio agora. Eu não poderia estar errado, por mais aterrorizante que isso fosse. Aquela voz era a minha. O último soco finalmente me apagou. Traumatismo craniano, provavelmente. Não sinto dor alguma. A sensação agora é outra, diferente. É boa, mas não consigo identificar o que é. Ainda penso no porquê de aquele homem, cuja face eu nunca consegui ver, ter a minha voz. Pensamento que logo é afastado por um som que quebra completamente o silêncio que me cerca. Um gemido.  Será que alguém além de mim está sendo torturado por aqui? A sensação boa que havia sentido antes começa a aumentar gradativamente à medida que meus sentidos voltam a mim. O ambiente ao meu redor se torna menos nublado enquanto esfrego os olhos com as costas das mãos. Com os olhos finalmente abertos, me vejo cercado por objetos comuns, uma cama na qual estou sentado, uma televisão desligada, um pequeno criado mudo ao meu lado esquerdo. Outro gemido, mais alto dessa vez. Nesse momento descobri de onde vinham os suspiros que ouvi há pouco. Para minha surpresa, vinham do mesmo lugar daquela sensação boa que substituíra a dor causada por tantos socos.
Olhei para baixo e descobri minhas calças arreadas até as canelas. Entre as minhas pernas abertas eu podia ver o topo de uma cabeça. Essa cabeça, que tinha longos cabelos loiros e fazia incessantes movimentos verticais, acompanhava o corpo mais lindo que eu já havia visto na vida. Encarei, perplexo, imaginando o que diabos teria acontecido para que eu estivesse tendo tais alucinações. Os gemidos ficaram ainda mais altos.  Eu ainda tentava levar minha cabeça de volta ao quarto 3_8. Sem sucesso.  Volta e meia, nos intervalos entre um movimento e outro, a mulher levantava um pouco o olhar para que eu pudesse ver seu rosto. Era o rosto de um anjo. Não tive o trabalho de perguntar, a ela ou a mim mesmo, por que ela estaria fazendo aquilo. Por um momento eu só aproveitei. Alguns instantes depois aquilo já não era o suficiente para mim. De súbito levantei, passei o braço ao redor de sua cintura e a lancei de bruços sobre a cama sem dizer uma palavra. Agarrei seus quadris, a puxei para perto, e fiz o que achei que deveria. Logo os suspiros de prazer se tornaram choros abafados, soluços. Era dolorido. Pra ela, não pra mim. Mantive aquilo por algum tempo, e quanto mais alto ela chorava, mais prazer eu parecia sentir. Não era um sentimento novo para mim. Enquanto o choro se transformava em gritos, ouvi um barulho incomum em meio a meu êxtase. A porta do quarto, à minha frente, rangia ao se abrir lentamente. Não parei. Não poderia ter parado. Não depois de experimentar tamanho prazer. Não pararia nunca.
Foi o que pensei, até que a porta se abriu completamente, revelando uma criança. Um garoto na faixa dos oito ou nove anos, provavelmente. Com aquele corte de cabelo que as mães costumam fazer colocando uma tigela na cabeça da criança e cortando o cabelo em volta. Parecido com o que eu usava quando era criança. A pequena alucinação entra no quarto a passos curtíssimos, abraçando uma bola de basquete. Não fala nada, só assiste o meu ato de barbaridade com o máximo de atenção. De repente não me sinto mais tão bem quanto antes. O choro da mulher que eu violentava sem piedade havia terminado há algum tempo, sem que eu percebesse. Em seu lugar ficou uma risada macabra, aguda como agulhas perfurando meus tímpanos. Ainda assim não parei, não podia parar. Não que eu não quisesse, a verdade é que eu já não controlava mais meus movimentos. Em meio àquilo tudo eu só conseguia olhar fixamente para aquela criança. O símbolo da inocência não parecia se surpreender, se assustar, ou nem mesmo se incomodar com nada do que estava acontecendo ali. Ele só ficava parado lá, olhando. Um sentimento ruim começou a tomar conta de mim. Eu não queria mais fazer aquilo, mas não conseguia parar. Coloquei as duas mãos nas costas da mulher e tentei empurrá-la para longe. Não consegui. Aquele abuso continuaria, eu quisesse ou não. De súbito uma voz feminina, sutil, doce e ao mesmo tempo horripilante, invade a minha mente:
— Mas não era isso que você queria?
Ao olhar para baixo encontro o olhar da minha vítima. Os lindos olhos azuis que havia visto momentos atrás deram lugar a buracos vazios, como os do hóspede do quarto 3_8. Eram exatamente os mesmos olhos. Seu sorriso bizarro exibia poucos dentes, apodrecidos. De seu nariz escorria um sangue grosso que viajava até sua boca, aberta, ainda rindo de mim. Eu pedi a Deus que me fizesse parar aquilo. Mas eu não poderia esperar por salvação.
— Isso não existe aqui.
Disse a criança, com uma voz serena, livre de preocupações.
— O que você disse?
— Ninguém vai te salvar daqui.
Mas o quê? Como essa criança poderia ter lido meus pensamentos? Que droga. Que lugar maldito é esse? O que está acontecendo comigo? São tantas perguntas, mas eu não consigo pensar direito com essa vadia rindo desse jeito. Eu mal consigo ouvir os meus pensamentos. Meu Deus.
— Não adianta chamar. Ele não vai te ouvir aqui.
Era a mulher falando de novo. Ela agora aparentava um prazer extremo, quase orgástico. Não pelo que eu estava fazendo com ela, mas pelo terror estampado em meu rosto. Ela se deliciava com o meu sofrimento, aproveitava cada segundo do meu desespero. A criança continuava inexpressiva, não demonstrando emoção alguma. O sentimento agora era raiva. A mais violenta e primitiva raiva. Com os punhos cerrados comecei a desferir golpes contra as costas e a cabeça da mulher. De nada adiantou. Eu ainda não conseguia sair daquela posição e ela continuava rindo a plenos pulmões. Minha frustração só parecia alimentá-la. Desesperado, olhei em volta e, para minha surpresa, avistei uma faca no criado-mudo. O mesmo criado-mudo que estava vazio quando recobrei os sentidos. Mas aquilo não importava. A essa altura as coisas não precisavam mais fazer sentido. Fiz tanto esforço quanto pude para alcançar o objeto. Consegui. Segurei a faca com as duas mãos e, sem hesitar, a enterrei nas costas da mulher. No alto das costas, um pouco abaixo da nuca. Até o cabo. A risada cessou. Um engasgo, alguns gemidos, e eu finalmente estava livre. Me retirei daquela posição, empurrei o cadáver para longe e fiquei de pé. A criança parada na minha frente não se incomodou com a minha nudez. Eu não esperava que fosse diferente. Olhei rapidamente para o corpo sem vida jogado no chão do quarto, era realmente um lindo corpo. Eu precisava de respostas. Precisava descobrir o que estava acontecendo comigo.
— Ei garoto, o que é isso tudo? O que está acontecendo?
Perguntei, deixando o meu bom senso completamente de lado. Como uma criança poderia me explicar o que estava acontecendo ali? Por um segundo me esqueci de que aquilo não era uma criança. O garoto continuou em silêncio, imóvel e olhando fixamente para um ponto atrás de mim. Curioso, olho para trás na esperança de descobrir o que prende sua atenção. Sem receios, movimento minha cabeça e, nada. Atrás de mim apenas um quarto de hotel. Ao voltar meu olhar para o garoto senti um arrepio que percorreu minha espinha como um raio. Sua pele tinha se tornado branca como uma vela, sua expressão era de um terror inacreditável. Com os olhos arregalados e a boca escancarada, o garoto continuou olhando para o mesmo ponto. Quase desisti de averiguar novamente o que o aterrorizava tanto. Infelizmente não havia nada mais a se fazer. Viro lentamente a cabeça, receoso, sem querer tirar os olhos do garoto parado à minha frente. Tenho medo do que pode estar atrás de mim. Tenho medo de encontrar coisas piores do que as que já vi até agora quando virar minha cabeça. Não seria necessário. Quando a trajetória do meu olhar se alinha com meu ombro direito vejo o que tanto repudiava. Parado bem do meu lado está ele. Aquele que me deu a pior surra da minha vida. Que quebrou minha mandíbula, meu nariz e arrancou meus dentes. Meu torturador estava bem ali, do meu lado. Virei o rosto para direção oposta numa fração de segundo, antes que pudesse ver o rosto do carrasco. Finalmente entendi o medo do garoto. Mas por que ele teria medo daquele homem? Ele não estaria ali para me punir? Aqueles dois não teriam o mesmo objetivo? Pelo jeito não. Me ignorando completamente, o homem que tinha a minha voz pôs-se a andar na direção do garoto. A cada passo, o medo do garoto aumentava, e sua expressão se tornava ainda mais assustadora. O pequeno se deslocou para trás, até encontrar a parede fria do quarto de hotel. Soltou sua até então inseparável bola de basquete. Pude ouvir dois quiques surdos e um gritinho abafado. O homem se curvou diante do garoto, estendeu uma de suas enormes mãos e agarrou seu pescoço. Sem cerimônia, quebrou o pescoço da criança com uma só mão, antes que ele pudesse gritar. Pude ouvir um risinho. Satisfação, talvez deboche. Não entendi muito bem. Ainda segurando o garoto pelo pescoço, o homem começou a se reerguer. Levantou a mão direita, que ainda segurava o corpo sem vida da criança, e se virou lentamente para me encarar. A primeira coisa que notei foi que a expressão no rosto do garoto em nada mudou. Ainda era de terror extremo. Porém agora pude notar algo que não havia visto antes. Algo desconcertante. Ele tinha alguma coisa no ombro esquerdo. Apertei os olhos para tentar enxergar melhor. Uma marca. Olhei para o meu próprio ombro por um segundo. A mesma marca de nascença que eu tenho. Um sorriso macabro brotou no rosto do carrasco. A imagem do gerente do hotel me veio à cabeça como um flash. Aquele sorriso bizarro, cheio de dentes.
— Finalmente percebeu?
A voz interrompeu meu devaneio. A minha voz. Finalmente voltei meu olhar para a fonte de todo o meu terror. Gostaria de nunca tê-lo feito. Quando botei meus olhos no homem de pé na minha frente, com um garotinho morto numa mão e a outra fechada em um punho, todas as peças se encaixaram. Era eu. Aquele homem tinha o meu rosto e a minha voz. Aquilo era eu. E riu. Mas desta vez não uma risada alta e sinistra. Não, ele estava apenas sorrindo, contente com a minha descoberta. E feliz por saber que eu havia finalmente entendido. E não era só ele. A criança também ria, embora de olhos fechados e com a pele ainda sem cor, sem vida. Finalmente percebi, tinha ficado louco. Aquilo não poderia ser verdade. Tateei a cama, sem tirar os olhos daquele homem. Encontrei a faca. Teria que acabar com aquilo logo, ou ele me mataria. Respirei fundo, levantei a faca e desferi o golpe. Acertei. Meu peito doía, próximo ao coração. Não tinha errado. Não tinha sido fraco.  Removi a faca, o sangue jorrava como se não fosse parar nunca mais. E eu não queria que parasse. Minha visão foi ficando turva, o que era bom. Logo não teria mais que olhar para aquela expressão hedionda no rosto daquele homem. Enquanto a visão escurecia, percebi que seu sorriso apenas aumentara, parecia extrapolar os limites de seu rosto. Não vejo mais nada. Acabou. Deve ter chegado a hora. Eu fiz o que precisava, eu saí de lá.
— Você vai voltar.
É o que eu escuto enquanto abro os olhos. Minha visão volta lentamente enquanto o que parece ser uma mão se afasta do meu rosto. Instintivamente levo minha mão ao lado esquerdo do peito. Nada. Não há ferimento. Não há sangue, além do que jorra da testa daquele homem cadavérico parado na minha frente. Me lembro de tudo. Eu estou de volta ao quarto 3_8. Droga, saí de um pesadelo para entrar em outro. Mas pelo menos agora tudo com o que eu tenho que lidar é um moribundo, ao que me parece, e um gerente de hotel com meio metro de altura. Era o que eu pensava enquanto o hóspede daquele quarto caía ao meu lado. Seus olhos vazios já não me encaravam mais. Seus ossos já não estalavam. Não se moveria nunca mais. Eu finalmente havia entendido o que aquele homem tentara me dizer, e aquilo não iria acontecer comigo. Não outra vez. Olho para trás e o gerente ainda está lá parado, como se tivessem se passado apenas minutos. Talvez tenham sido apenas minutos. Não sei dizer. Seu sorriso não mudara nada, ainda me lembrava o sorriso do homem que me torturou, e isso me deixava muito nervoso. Finalmente a estranha figura começa a se mover. A passos curtos, tranquilos, o gerente adentra o quarto pela primeira vez. Tento me virar para encará-lo, mas uma tontura estranha me impede. Que diabos está acontecendo? Poucos segundos depois, e o homem está parado ao meu lado. Consigo ver apenas seus sapatos de couro falso. Não consigo direcionar meu olhar acima disso sem ficar tonto. Faço um esforço descomunal para agarrar suas pernas. Sem sucesso. Vejo apenas o corpo do homem que tanto me assustara há alguns míseros minutos ser arrastado para fora do quarto, sem reação.
Não tenho forças para me levantar, mais ainda posso me arrastar. Com muito esforço consigo me deslocar até um canto. Olhando para o fundo escuro do quarto consigo me lembrar de tudo, ouvir todas as vozes, as risadas, os ossos se quebrando, os gemidos. Eles ainda estão aqui. Não sei o que fazer. Tento me levantar de todos as formas que consigo imaginar. Cravo minhas unhas nas paredes na tentativa de me reerguer para sair daquele lugar. Perco algumas. Levo minhas mãos ensanguentadas à cabeça em meu desespero. Alguns fios de cabelo são arrancados em meio à frustração. O que farei agora? É culpa daquele gerente. O que ele fez comigo? Ainda ouço as vozes. Elas dizem coisas horríveis. E o pior é que tudo que elas dizem é verdade.
Consigo me ajoelhar, de frente para a porta do quarto, apenas para ver o pequeno homem arrastar o corpo completamente para o lado de fora. Ele se volta novamente para mim, sem nunca tirar aquele sorriso bizarro do rosto. Eu quero mata-lo. Eu quero muito. E ele sabe disso. Ele gosta disso. Tento me levantar mais uma vez. Por pouco não consigo dar um passo. Tombo novamente. Sinto dor, bati a cabeça na queda. Isso é bom, alivia um pouco o som das vozes. Elas parecem gostar disso. Fixo novamente meus olhos no gerente. Está tudo enevoado, mas ainda consigo enxergar aquela pequena silhueta. Me esforço além dos limites para falar. Consigo. Quase.
— Você...
— O que você...
— O que você fez?
Ouço um risinho abafado. Olho para cima, ele ainda me encara. Com um sorriso maior do que nunca, diz:
— Eu não fiz nada. Isso tudo é seu.
Essas palavras ecoam na minha mente, em meio às vozes, enquanto o gerente dá sua última olhada. De repente a porta começa a se mover. Tento ao máximo me arrastar, preciso impedir que ela se feche. Tenho que sair daqui. Preciso sair daqui. Droga. Parem de falar, eu não aguento mais. Eu não vou ficar aqui com vocês. Vejo o último feixe de luz se extinguir enquanto a porta é fechada. Escuto o barulho da chave girando, me prendendo ali, com eles. Olho em volta enquanto ainda consigo enxergar. Vejo a cama jogada contra a parede. Vejo as paredes arranhadas e olho para meus dedos sem unhas. Dou uma boa olhada naquela que será a minha prisão, enquanto eu durar. Enquanto eles quiserem. A última coisa em que consigo pensar, enquanto a escuridão leva embora meu último resquício de sanidade é:
— Eu quero sair daqui.










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