– Guto, me dá um golinho d'água?
– Faço melhor que isso, compro uma pra você. Pela nossa amizade.
Espero sozinha ele voltar, a Kátia não veio com a gente. Sacanagem, ela mora em frente à boate, mas depois de se empanturrar no rodízio de pizza para esquecer a traição do noivo, disse que não tinha mais forças. Ela não contou para ele que descobriu tudo e, sem saber o que fazer, comeu muito mais do que um estômago humano poderia suportar. Sei que no final ela não vai fazer nada, morre de medo de ficar como eu, para titia. Foi para casa afogar as mágoas cozinhando, embora ontem tivesse prometido me acompanhar. Sempre me ferro...
Que gentileza do Guto ir comprar uma água para mim, mas ficar no meio de uma pirralhada esperando ele voltar é dureza. Não é aqui que eu vou desencalhar. Ele volta com a água e um sorriso e logo me puxa para a pista de dança. Não resta a menor dúvida do erro que é pisar num lugar destes depois dos 30. Penso positivo e digo pra mim mesma – Vamos lá, você ainda se lembra como se divertir aqui, não faz tanto tempo assim. Estou quase me convencendo, quando o DJ para o som, todo mundo canta junto e eu fico de boca aberta sem nem saber o nome da música que, pelo visto, é o hit do momento. Guto, bem mais novo do que eu, vai logo depois para o ficódromo atrás de uma caixa de som, e eu fico no vácuo. Mesmo que eu quisesse acabar de criar um dos frequentadores do local, ninguém nem olha para a tia tomando água e se encostando na pilastra para aliviar a dor nos pés. Eu deveria ter posto saltos menos altos. Sempre me ferro...
Vejo de longe algo que parece o Guto sendo carregado. Será que agora é moda sair da boate nos braços da galera? Demoro a entender que meu amigo está desacordado, e os seguranças jogam-no na rua. Largam-no como se fosse um pano de chão, o coitado está até sem camisa. Quando consigo chegar aonde ele está, desconhecidos estão revirando os bolsos procurando uma identificação. Seguranças desgraçados! Uns curiosos, que param para ver, dizem que agora fazem isso com os clientes que passam dos limites e podem trazer problemas para o estabelecimento. Fico furiosa com a falta de respeito. Pego todos os pertences e ponho na minha bolsa: carteira, celular, loção após barba, chave de casa. Nenhum táxi aceita parar para nós. Sempre me ferro...
Pela quarta vez, grito com a caixa de mensagens da Kátia
– Atenda este telefone, que inferno!
Abandono o Guto e os meus sapatos na calçada com um casal desconhecido e atravesso a rua correndo. Graças a Deus é o seu Zequinha que está na portaria e me deixa subir sem tocar o interfone. Esmurro a porta até a Kátia abrir com cara de choro, avental na cintura, fones de ouvidos e colher de pau na mão.
– Não comeu o suficiente não?
– Fui fazer uns brownies para ... - não a deixo terminar e entro empurrando a porta.
– O Guto tá passando mal, desmaiado na rua, a maior derrota. Pegue a chave do carro, e vamos pro hospital.
Ela larga tudo e sai correndo para pegar as chaves no quarto. Aproveito para comer um, dois, três brownies. Ela fez miniporções desta vez. Um arraso. Não aguento esperar mais e entro pelo corredor com cuidado para não fazer barulho. Ela está pálida, ou seria verde? Quem mandou comer demais? Dor de barriga não cura dor de cotovelo. Sentada na parte de cima do beliche ela começa a vomitar. Sai até pelas orelhas.
– Kátia fecha esse chuveiro! – ouço o pai dela gritar enquanto me encolho atrás da porta para escapar dos respingos.
O irmão dorme embaixo sem nem perceber que foi golfado. Apesar das minhas precauções, acabo com uma mancha meio verde na barra da minha calça. Acho que é gorgonzola. Sempre me ferro...
Enquanto eu abro a janela para atenuar o cheiro, Kátia encontra forças para passar um pano no chão antes de sairmos. Ainda ficou meio sujo e fedorento, mas, pelo menos, o irmão dela não vai enfiar o pé numa poça se acordar à noite para fazer xixi.
Quando chegamos, vemos um cachorro lambendo a cara do Guto, e o casal ainda estava ao lado me esperando. Impossível colocar os noventa quilos musculosos e inertes sozinha no carro, idiotice pensar que eu poderia. Kátia sai do volante, e o casal também dá uma força. Levamos uns dez minutos para fazer caber aquele 1m95 de homem suado e sujo de lama no banco de trás do carro compacto da Kátia. No final, para conseguir fechar a porta, tive que dobrar o pé dele de uma forma que teria sido bem dolorosa caso ele estive consciente. Partimos para o Miguel Couto. Percebo que esqueci meus sapatos na calçada. Fico meio deitada com ele para apoiar sua cabeça, e minha blusa acaba toda babada. Sempre me ferro...
Já estamos no Leblon quando um policial pede para a Kátia encostar o carro. Só faltava essa. Contudo, acho normal que um corpo inconsciente e sem camisa deitado no banco de trás chame a atenção de um policial. Explico a urgência, e a Kátia mostra os documentos. Não sei se minha cara de desespero está convincente ou se é pura preguiça do policial de fazer mais perguntas, mas graça a Deus ele nos libera.
Vamos direto para a emergência do hospital, e mal posso acreditar quando nos dizem que nós mesmas teríamos que colocá-lo na maca porque não há enfermeiros disponíveis. Um taxista fortão, que tinha acabado de deixar uns passageiros, fica com pena e nos ajuda. Ele carrega quase o peso todo sozinho porque eu já estou sem forças, e a Kátia tem que segurar as próprias calças que não fecham mais depois que ela as abriu para conseguir dirigir sem vomitar. Acho que ela nunca mais vai comer pizza.
Contra todas as minhas expectativas, somos atendidos pouco tempo depois. Os médicos olham a gente de lado. Examinam-no e nos fazem poucas perguntas antes de mandá-lo para repouso com medicação intravenosa na enfermaria. Dizem que vai ficar bem e que pode voltar para casa quando acordar.
Enquanto esperamos, conto pra Katia minha revolta com os seguranças na boate e mostro os pertences que recuperei e botei na minha bolsa. Quando ela vê a loção após barba na minha mão, faz cara de susto e a guarda entre os peitos. Assim que Guto acorda, saímos do hospital, e ele me explica, meio envergonhado, que não deve ter diluído o conteúdo da droga sintética em quantidade suficiente de água.
– Não vai dar pra chegar em casa assim. Tô muito acabado. Minha mãe vai desconfiar de alguma coisa. – preocupa-se Guto.
– Podemos ir para minha casa. Mas antes vamos passar na casa da Kátia para pegar uns brownies. Vi que ainda sobrou um montão. Depois de toda essa adrenalina, acho que vocês me devem isso.
– Deixem quieto. - diz Kátia - Isso é uma vingancinha minha para o Eduardo. Cuspi em cada um daqueles pedaços e, quando consegui, ainda coloquei um bom catarro. Ele adora brownie, vai comer e ainda vai me elogiar, aquele desgraçado. Quem mandou me trair com aquela lambisgoia?
Prefiro nem falar nada. Sempre me ferro!
Revisão: Gleison Silva
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Exageros
Short StoryNo meio de uma crise dos 30 anos, em uma noite em que tudo parece dar errado do início ao fim, é sempre bom saber que temos amigos com quem contar.