Bruce gostava de dar nomes a si próprio, ou se autointitular, geralmente depois de passar algumas horas imerso em livros, filmes ou séries, certa vez, se declarou o homem das mil vidas, por já ter morrido mentalmente incontáveis oportunidades.
Sentia que a vida usurpava sua morte, como se ela lacrasse a única chance de descansar sua alma, numa destas noites escuras e densa, deitado na cama, com as palmas das mãos atrás da cabeça, observava pela única fresta que a cortina permitia, o manto negro que habitava fora do apartamento.
O tilintar dos segundos passando pelo ponteiro do relógio era sua única distração, que se repetiam num ciclo infinito e hipnotizante. Os dias não estavam sendo dos mais fáceis para ele, nunca foram na verdade. Seu corpo pesava cada dia mais, o caminhar era curvo, e os pés rastejavam ao andar, não por ser velho, mas por sofrer prematuramente com a fadiga de seus pensamentos.
Durante o dia, parecia não existir perante as pessoas, e a noite, se sentia ainda mais sozinho, como se o mundo o houvesse esquecido, todos mudaram para um novo planeta e não tiveram a preocupação de avisá-lo que a terra estava fechando as portas. Contava sua vida ao contrário, estimando que pereceria definitivamente aos 76 anos, calculava que agora estava com 50 anos, o tempo faltante subtraindo sua idade de nascença. Esperava pelo ano zero tanto quanto uma criança pela noite de natal.
Suas ideias aquela noite alternavam entre a corrente de ar gelada que soprava no sétimo andar e a aproximação do relógio com a meia-noite. Costumava conversar consigo próprio nos dias que o viajante roxo não o visitava.
Desde o primeiro contato com seu melhor amigo, uma figura misteriosa de manto cor de uva e pernas largas, cabelos longos negros como a noite, a face escondida atrás de um capuz de igual cor, percebeu uma alteração em seu humor, que era ainda mais taciturno e cinzento, acordava durante a madrugada cheirando a morte, correndo até o chuveiro e esfregando a pele até esfolá-la, sempre sem sucesso, mantendo-se impregnado com um odor que coçava suas narinas.
Durante estes banhos, do outro lado do vidro, seu conhecido aguardava sentado sob o assento sanitário. Sempre divagando sobre temas mórbidos e posteriores a vida, ele tinha um apreço por tudo que não respirasse e por muitas vezes induzia Bruce a buscar a única saída para sua angústia.
Mesmo sabendo a tristeza que as conversas com o vagante deixavam seu estado de espirito, o jovem depressivo preferia sentir algo ruim do que continuar depositando a esperança de sua felicidade nas pessoas, que o machucavam a cada nova rejeição. Não compreendia a plenitude da alegria, nem como existir contente sem ter alguém para compartilhar suas conquistas ou consolar nos infortúnios.
Ópio aliado ao álcool adormeciam sua dor, e em determinadas situações espantavam a presença do viajante roxo, quando a mesma parecia uma guilhotina, sendo suas palavras a lâmina afiada que deceparia seu pescoço num tempo inferior a um piscar de olhos.
Agoniado, deixava a porta do quarto aberta apenas uns quinze centimetros, pois, fora uma vez alertado pela sombra púrpura daquele ser, que bloqueá-lo era o equivalente a acumular sua essência para que numa próxima visita sua taça seja preenchida até transbordá-la.
A pele do rosto do novo adulto passava de branco para um pálido, abaixo de seus olhos, sombras surgiam e o cabelo caia mais do que pêlo de cachorro. Sabia que não estava bem, mas todas as pessoas a quem confiou para pedir ajuda, não se importavam, pareciam bonecos inanimados que mexiam a boca e piscavam os olhos para imitar os gestos humanos.
Estava sozinho, preso em seu universo particular, com o vento que entrava pela janela e o ritmo do ponteiro do relógio. De tempos em tempos, olhava pela porta, não sabe se ansioso ou horrorizado com a possibilidade de ver uma cor violácea em meio ao negro.
Leve com o uso de seus relaxantes, o homem contava os dez segundos faltantes para as horas atingirem o ponto mais alto do círculo do tempo. Durante a contagem, fechou os olhos, como se soubesse o que fosse acontecer ao abri-los.
Antes de chegar ao três notou um peso deitando-se ao seu lado, na verdade dois, um a direita e outro a esquerda, uma sensação de desespero passou por sua cabeça, teria o andarilho trazido um amigo?
E ao abrir os olhos, viu dispostos em lados inversos dois anjos gêmeos, ruivos e nus, com asas pequenas brancas e corpos maiores que a cama, a parte a partir do joelho ficava fora do móvel. Ambos diziam palavras ao mesmo tempo, de forma sincronizada e conjunta, como se de fato fossem uma única pessoa.
"Quem são vocês?". Perguntei, intrigado com a presença daquelas figuras.
"Aqueles que você achar que somos". Responderam, numa voz doce e trêmula, semelhante a um caminhar num campo verdejante e florido durante uma noite de intenso frio.
"São amigos do viajante púrpura?".
"Não. Viemos ver como você está". Afirmaram.
"Nunca estive bem em vida". Disse, procurando na lateral da cama algo para aliviar a melancolia.
"Por que?".
"Eu também não sei, tenho a impressão de que fui jogado neste mundo e queimaram o manual de instruções. Tenho medo de amar, por não saber se é bom ou ruim, tenho medo de acreditar, por não saber ser verdade ou mentira, e aflição da morte, por não entender se é possível ou não".
"Por que pensa de forma dualista sobre sua existência? Separando a luz da escuridão, o mar da terra e a vida da morte? Se dissermos a sua pessoa que somos um anjo e um demônio, é capaz de distuinguir qual de nós é cada um?".
O jovem pálido e confuso passou a mão no rosto, enxugando um pouco do suor que estava sentindo, refletindo a respeito da questão.
"Como poderei cumprir tamanha façanha, se são idênticos, e compartilham o mesmo pensamento e fala?"
"Por que divide seu raciocinio em dois?".
"Pois vejo dois corpos distintos perante mim, um a minha direita e outro a minha esquerda". Estendi as mãos mostrando o lado em que cada anjo estava.
"E se não pudesse enxergar? Ainda assim acharia que somos independentes?".
"Sentiria seus pesos separados afundando proporcionalmente o colchão".
"E se não pudesse sentir nosso corpo? Acreditaria em nossa separação?".
"Se acaso dissessem com sua voz dupla, ainda os dividiria mentalmente".
"E se apenas sentisse a presença de algo que aqueça seu coração?".
"Neste caso, não associaria a anjos gêmeos, e sim a um sentimento ou estado, algo abstrato e não palpável, isento do fardo da matéria".
"E por que trata a vida como algo diferente da morte? E o bem como o oposto do mal? Não podem existir essas metáforas humanas em igual proporção? Suas frustações não podem ser a alegria de um outro ser? Por que pensar como um único se talvez ao fechar os olhos e anular seus sentidos, entenda que faça parte de uma dupla, um trio, um grupo ou até mesmo uma imensa máquina que opera o destino de todos seus semelhantes?".
Bruce pensou a respeito do egoismo, dos julgamentos, e dos pensamentos destrutivos que sempre surgiam dentro de sua própria mente, na verdade, a origem de todo o cosmo tinha inicio na pequena fonte que conhecemos como alma, gerando uma energia infinita que circula o cosmo e retorna até nós.
Quando ia proferir outra pergunta aos seres de cabelo escarlate, notou que não mais estavam entre eles, o relógio marcava três horas da madrugada e pela fresta da porta um manto roxo desaparecia no escuro.
Mais um dia o homem de mil vidas venceu o vagante.
YOU ARE READING
Os fragmentos de uma mente perturbada
Short StoryOs fragmentos de uma mente pertubada é uma coletânea de contos que traz histórias para serem lidas num único fôlego, preferencialmente a noite antes de dormir, voltadas a trazer mensagens breves, mas não menos importantes. Já que, vivemos de momento...