Em tempo, consegui arranjar um novo amigo.
Já fui rico. Não o tipo de riqueza que te leva para a Europa todo ano. Tinha uma mãe doce e paciente, um pai atencioso, embora ocupado, uma casa espaçosa e um cachorro vira-lata. Minha responsabilidade era comparecer ao futebol de quinta. Ainda não trabalhava, mas também não transava nem bebia.
Fiz dezenove e fui trabalhar na empresa que meu pai ergueu. Um homem admirável, ele. Me botou como secretário. Gente boa começa de baixo, disso ele fazia questão. Eu estava patinando, mas todos diziam que era questão de tempo.
O universo, bicho maldoso, não gostou do meu plano de carreira. Da família, meu pai foi o primeiro a ser demitido. Infarto fulminante, disseram os médicos, nada que se pudesse fazer. Minha mãe vestiu o preto, eu vesti a camisa da empresa. Às vezes, a camisa era preta. Agora, eu tinha funcionários a manter. Agora, eu achava alguma graça em beber.
Chegava em casa e ia direto para meu melhor amigo: o whisky. Nada que um empresário não pudesse comprar. Ficava no meu quarto, em silêncio, na cama. Tudo escuro, nenhuma intervenção. Bebia e dormia. Uma vida resolvida em dois verbos. Parecia fácil, mas era falso.
Minha mãe que me abriu os olhos. Como quando eu era criança e ela me explicava a diferença entre "por que" e "porquê", agora ela explicava que a vida continuava, a diferença entre "sofrer"e "ceder". Melhor que qualquer psicólogo, minha mãe resolveu meu problema com muita conversa. O whisky solitário foi substituído pelo mingau de aveia em dupla. A solidão pelo abraço de minha mãe. O silêncio pela voz de Caetano - minha mãe era apaixonada por ele.
Ela não via muito problema no álcool. Porém, beber em casa e sozinho, como dizia ela, era uma perda de tempo. Dizia que era impossível ser feliz sozinho. Tenho certeza que ela ouviu isso em alguma canção. Pediu para que eu saísse com as pessoas do escritório, amigos de infância ou quem quer que fosse.
Minha mãe, como sempre, acertara em cheio. Entre cafezinhos no expediente e cervejas no bar, conheci Arlete. Ela era caótica. Levantava às seis - da tarde. Trabalhava no bar. Tinha piercing em todo canto; era feita de ferro. Fazia bebidas maravilhosas. Perto dela eu me sentia estranho. Uma figura tão oposta a mim, tão tempestuosa. Lembro de nossa primeira conversa. Ela nunca respondia o que eu esperava. Arlete, você é imprevisível. Eu disse como um elogio, mas ela pegou suas coisas e foi embora. Sozinho no bar eu pensava: faltam poucas horas para o cafezinho.
Felizmente, o destino me deu vantagem: do bar Arlete não fugiu. Minhas olheiras estavam ficando grosseiras, mas eu fazia questão de vê-la. Os cabelos sem corte me encantavam. Conversamos mais algumas vezes. Eu sempre falava algo errado, ela sempre ia embora sem me dar tchau. Um dia cheguei nervoso ao balcão. "Você e essa sua mania de me deixar sozinho!", acusei. Ela sorriu.
A empresa continuava muito bem, obrigado. Não era um bom secretário, mas talvez fosse um bom substituto para o meu pai. Fazia tudo para orgulhá-lo. Minha mãe via e aplaudia. Logo depois, Arlete também. Casamos. Ao modo dela, sem cerimônia nem aliança, mas casamos. Conheci o mundo pelos olhos de Arlete; Itália, Nova Zelândia, Alemanha. Ela sabia de tudo um pouco. Pensei: tenho a vida perfeita.
O universo achou graça. Demitiu minha mãe.
Já estava bem velha. De novo, nada que se pudesse fazer. Depois dela, o fantasma da tristeza assombrou minha alma, minando meu sorriso. Arlete não sabia o que fazer comigo. Eu não queria nada. Não precisava vestir o preto, eu já não via luz.
Meu pai nunca afrouxou a mão de seu pequeno império. Eu, derrubado na cama pela melancolia, larguei as rédeas e a empresa começou a descer. A culpa me corroía e a minha solidão me consolava. Cheguei à conclusão de que a vida não tinha sentido.
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Assombra
Short StoryO passado assombra a todos nós de alguma forma. Lembranças ruins deixam cicatrizes, enquanto as boas deixam saudades. Esta é a história narrada por um homem à beira da morte que, ao rever sua vida como um filme diante dos olhos, dá ao leitor a oport...