CAPÍTULO 1
Sua respiração estava ofegante. Ele andava sem sequer olhar para trás, a sua vontade maior era o que precisava ser feito e nada mais. Não havia outro jeito e o desespero lhe tomava conta. As ruas estavam calmas, já era madrugada em Vinhedo, cidade no interior de São Paulo. Uma pequena garoa cobria os carros, a população parecia toda adormecida na quietude da noite. Ao passar por perto do ponto mais escuro, assustou-se, um gato com seus olhos faiscantes atravessou o seu caminho. Esperou o felino correr pela rua em direção ao centro, e atravessou para o outro lado. O prédio era conhecido por ser abandonado e a sua entrada a essa hora não despertaria a curiosidade de ninguém. Ao entrar, percebeu que o portão estava com a corrente danificada, provavelmente algum morador de rua já viera ali também. Sua respiração continuava ofegante e, ao dirigir-se às escadas, decidiu que o melhor seria tirar os sapatos desconfortáveis. O elevador não funcionaria sem energia e subir até o último andar exigiria disposição, embora esse fosse praticamente seu último esforço físico da noite. Ele havia tentado de tudo, o seu desespero agora era ou seria momentâneo. A única sensação que lhe acompanhava era de urgência. Era preciso sangue-frio e, a cada passo, a cada degrau, ele sentiu sua alma se distanciar do corpo; nessa vida tudo lhe era efêmero. Quase chegando ao topo do edifício, ele resistiu ao cansaço, não quis perder mais tempo, mesmo que os minutos já não fizessem diferença. O prédio ainda mantinha a disposição da velha empresa que ocupava o último andar. Ele, então, parou em frente à porta de vidro sujo que denunciava o eterno ar de abandono do lugar. Seus olhos refletiam, apesar da ausência de brilho, alguma vida em meio ao fim iminente. A adrenalina terminava ali. Ele suspirou, abriu a janela e deixou o seu corpo mole, praticamente já sem vida, cair do décimo andar exatamente à 1:00 hora daquela fria madrugada.
***
– Mas o que houve? – indagou para si mesmo, despertando. O burburinho vindo da sala parecia ter surgido como um ladrão. Lauro havia chegado de São Paulo na noite passada, à 1:00 hora da madrugada, para passar as férias na casa da avó Hermínia. Toda vez que a saudade batia, ou as lembranças ficavam latentes, ele dava um jeito de vir a Vinhedo. Levantou-se e ajeitou os cabelos. Fez menção de deixar o quarto, mas antes procurou os chinelos, que estavam embaixo da cama, e pegou os óculos na cabeceira. Abriu a porta, receoso de alguém desconhecido vê-lo, e caminhou lentamente pelo corredor até a sala. Ele percebeu que três senhoras da vizinhança estavam com sua avó no sofá, seus semblantes demonstravam tristeza e a atmosfera não parecia das melhores. Seus pensamentos então foram interrompidos por Lucinda, que veio ao seu encontro com um bule de café em uma das mãos enquanto, com a outra, carregou-o pelo braço para a cozinha. – Uma tragédia, meu filho – disse sem segurar a emoção. – O filho de dona Carminha se suicidou ontem à noite... As senhoras do grupo de oração vieram agora cedo avisar sua avó. – Sem perceber, Lucinda despejou toda a situação de uma vez só. Lauro, que ainda parecia estar com a cabeça no espaço, finalmente aterrissou num pouso forçado. Durante os anos que morou na cidade sempre ouvia falar de dona Carminha e sua família, uma das mais influentes e dona da vinícola Benatti. Não eram próximos, mas sua avó, que ministrava o grupo de oração da Igreja do Nazareno, já estava a par do acontecido. Percebendo-o sem reação, Lucinda tentou amenizar:– Bom, o que nos resta a fazer agora é orar por essa pobre alma. O suicídio nunca será a resposta que os pobres de espírito procuram nessa ou numa próxima vida. Infelizmente, o rapaz não deve ter tido nenhuma ajuda ou até mesmo um coração amigo para guiá-lo. Ela se distraiu por alguns segundos.– Irei logo fazer uma prece, esse pobre espírito não terá luz ou mesmo direção... Lauro a observou, mas sua cabeça não conseguia acompanhar as palavras nem as intenções que pretendia expressar em suas orações. Lucinda finaliza:– Tenho certeza que sua avó irá ao velório e sinto em lhe pedir isso, meu filho, mas talvez você deva acompanhá-la. Ficaria mais tranquila... ela, mesmo lúcida, não é mais uma garotinha. E você sabe que ela nem sempre me escuta. O rapaz não pestanejou ao responder:– Tem razão, mãe Lucinda. Ela terá a minha companhia. Lauro perdeu os pais ainda menino. Sua avó materna era tudo no mundo para ele, e Lucinda, que trabalhava na casa por mais de duas décadas, tornou-se uma segunda mãe que o destino não economizou para poupá-lo de todo o sofrimento. Filho único, dedicou-se a esquecer o acidente estudando. Veio a se tornar um psicólogo para entender as dificuldades e os transtornos mentais que afligiam as pessoasEle próprio poderia ter enlouquecido ou até mesmo ser o protótipo da depressão, considerando a solidão que a perda de seus pais lhe trouxe. Mas na vida há escolhas, e Lauro escolheu muito bem quando resolveu se dedicar às pessoas. Ao se formar e mudar--se para a capital paulista, estava disposto a enfrentar quaisquer obstáculos, incluindo aqueles relacionados à sua sexualidade. Ele havia deixado claro a sua homossexualidade desde muito cedo, algo que nunca foi um problema ou empecilho para sua avó e Lucinda. Na verdade, Lauro era muito discreto e as mulheres muitas vezes tinham dúvida sobre a sua orientação sexual. Depois de tomar o café quente que tanto lhe trazia boas recordações, sentiu-se melhor. Decidiu que o propósito de seus dias em Vinhedo tinha agora mudado: ajudar o próximo. Lucinda fora levar mais uma rodada de café para as senhoras que ainda estavam com Hermínia. Sozinho, Lauro deixou-se perder de novo em pensamentos, especialmente sobre o sentimento que teve ao se despedir dos pais no dia do acidente. Volta e meia, lembrava-se de haver pressentido o que estaria para ocorrer. Isso fez com que bloqueasse toda e qualquer vontade de lidar com o fantástico ou sobrenatural, mantendo assim um pé atrás de que ele seria diferente, especial ou coisa e tal. Apesar da recusa em pensar seriamente a respeito, quando começou a clinicar, ele muitas vezes intuía o diagnóstico dos pacientes. Não gostava de dividir isso com ninguém, no entanto, pois temia ser mal-interpretado. Ao anoitecer, Lauro estava assistindo ao telejornal na sala. Ao seu lado, a avó Hermínia se dedicava ao tricô, o que na sua idade avançada era muito significativo. Ela tinha um semblante preocupado, mas tentava não aparentar mais do que a situação exigia. Queria aproveitar a vinda do neto amado e sabia, no seu íntimo, que tragédias deste porte sempre mexiam com suas memórias. Olhando-o com carinho, ela conseguia ver o belo homem que Lauro se transformou. Amélia, sua falecida filha, teria ficado orgulhosa. No telejornal local, o que se noticiava era a morte do rapaz, não se falava de outra coisa. A família era muito influente e a mídia não perdoava e arriscava palpites, desde morte por excesso de uso de drogas até depressão. Era incrível como a morte por suicídio causava em todos a impressão de que apenas uma palavra poderia justificar o injustificável. Isso fez com que Lauro ficasse impaciente. Como psicólogo, ele sabia ser impossível entender a motivação para a morte do pobre rapaz sem, de fato, tê-lo conhecido em sua realidade. Consternado, pegou o controle na mesinha ao lado do sofá e desligou a TV. Sua reação fez Hermínia se desconcentrar e deixar seu tricô por alguns instantes.– Meu querido, deixa estar... – ela disse. – Essas calúnias na televisão são iguais aos jornais que preferem vender uma mentira qualquer a se dignar a ajudar quem sofre do mesmo mal. Não posso lhe afirmar o que se passou, mas tenho certeza de que a verdade irá surgir. Vitória, a irmã do falecido, não permitirá por muito tempo essas especulações.Lauro não queria dizer nada, mas qualquer ajuda tardia depois de um suicídio lhe dava um triste sentimento de impotência. Isso porque a vítima era, geralmente, a primeira a ser incompreendida e julgada pelo seu próprio sofrimento. Era injusto culpar quem já não estava ali para se defender. Ele percebeu que suas emoções se afloravam quando este assunto vinha à tona, por isso olhou com carinho para a avó ao responder:– A senhora tem razão, um dia o acesso ao apoio psicológico será possível a todos que precisam. Muito mais do que simplesmente ouvir e diagnosticar doenças mentais, nós, psicólogos, temos o dever de evitar suicídios e atentados à vida. O futuro ainda é promissor, eu acredito. Sentou-se no chão próximo à perna da avó que tricotava uma grande manta. Ela lhe acariciou os cabelos e, em seu coração, permitiu-se agradecer a Deus por ter cumprido a sua missão de criar um neto com moral e princípios. Eles são interrompidos por Lucinda a adentrar a sala para anunciar que o jantar estava servido. Lauro ajudou a avó a se levantar e, com leves passos, ambos se dirigem à sala de jantar. A casa era muito aconchegante e Lucinda, que não tinha família própria, era muito caprichosa em manter tudo limpo, bem cuidado, sempre com a aprovação de Hermínia que não impunha nada à amiga e ajudante. A parceria delas já durava muitos anos, fortalecendo-se mais ainda após a morte dos pais de Lauro e a viuvez de Hermínia. Mesmo com tantas perdas, incluindo a morte prematura da filha, Hermínia não havia se deixado abater. Agora estava feliz com as conquistas que a vida poderia ter lhe dado nestes pouco mais de oitenta anos. Apesar de muitos não acreditarem, a vida é sábia. Mesmo quando não compreendia o que estava por vir, no seu coração, Hermínia sentia-se grata, e isso refletia na casa e na sua atmosfera quase sempre alegre. Ela, em oração já à mesa, agradecia a chegada do neto antes de finalmente degustarem o delicioso jantar preparado por Lucinda. Finalmente um momento em família, um agradável encontro que o destino lhe reservou.
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Como eu gostaria que você tivesse me conhecido (Romance/paranormal)
RomanceSeria possível se apaixonar por alguém que já se foi? Lucas & Lauro nunca se conheceram, não nesta vida... Mas o que somente seria uma viagem de férias descompromissadas no interior de São Paulo, vira e revira a vida de Lauro pelo o avesso de suas c...