A escuridão

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  Jéssica Vidal tinha todos os motivos para estar com medo. Uma mulher jovem e bem vestida caminhando sozinha em meio a penumbra de calçadas e becos vazios do Rio de Janeiro, seria um prato belo e atrativo para inimagináveis tipos de criminosos. Felizmente, aquele tratava-se de um bairro nobre, com várias câmeras de segurança nas ruas e nos portões das casas, alguns residentes mais afortunados contavam com o trabalho de vigilantes armados que faziam rondas noturnas pelos imensos jardins. Poucos bandidos arriscavam-se por aquelas bandas. Mas, não era dos vivos que Jéssica sentia medo, e sim dos mortos.

Ela não acreditava em caminhos traçados por uma força maior, tudo que existia era, ação e reação e naquele momento, ter abandonado seu carro e decidido seguir o resto do percurso a pé, não parecia mais ter sido uma boa ação. Um Palio cinza do ano de 2010, condizente com o salário que recebia e que agora estava dando mais despesas do que benefícios. Algumas vezes, precisou da ajuda de desconhecidos para empurrá-lo, os atrasos ao trabalho se tornaram cada vez mais frequentes e os descontos no seu contracheque a forçaram a gastar mais do que deveria para conseguir alugar o vestido azul e fino que estava usando.

Diminuiu o ritmo acelerado de seus passos e refletiu se daria ou não continuidade a aquela ideia, que para ela, beirava ao absurdo. Não sou parte disso ― pensou ela ― é como um gato, ser jogado na jaula dos tigres. Não sei se fico triste pelo carro ter enguiçado, ou feliz por não ter que chegar com ele. De qualquer forma, não posso decepcioná-la, Emma insistiu tanto para que eu viesse, prefiro lutar contra os tigres.

Apesar de não acreditar em destino, os sinais começaram a se juntar em sua mente: Um convite impossível de ser recusado, um vestido caro, um carro quebrado, um longo percurso em uma rua vazia, um atraso iminente e por fim, as estranhas alucinações que tem tido no decorrer da semana. Tudo se encaixava para que algo terrível acontecesse. Sentiu uma gota de suor gélida descer de sua nuca e percorrer toda sua espinha, desencadeando um medonho calafrio que tomou seu corpo por completo. Imediatamente, sua memória a levou ao passado. O qual ela passou doze anos se empenhando em esquecer.

Uma garota ingênua que buscava o amor desesperadamente, talvez induzida pelos vários livros de romance que lia incansavelmente, ou pelas histórias de suas amigas experientes em relacionamentos e que faziam questão de exibir seus namorados ― a grama parecia sempre verde do lado de lá. 

Com o tempo, Jéssica acabou encontrando o que procurava. Um garoto belo e que levava muito jeito com as palavras, sabia exatamente o que dizer, quando dizer e o efeito que causaria. Não demorou e Jéssica se viu presa a um relacionamento doentio, no qual fora obrigada a fazer tudo que seu namorado exigisse, se quisesse permanecer viva, recusar não era uma opção, coisa que, Enzo fazia de tudo para deixar bem claro. Contudo, essa história não é sobre as maldades que as pessoas podem fazer, existem coisas que podem superar os horrores da humanidade, e Jéssica, vivenciou as duas faces do mal.

Durante um ataque de ciúmes, Enzo, que há algumas semanas já se mostrara fora de si, a sequestrou de carro em frente a sua escola com a desculpa de que queria apenas conversar sobre a relação. Os sinais estavam ali, escancarados para que ela pudesse evitar todo o sofrimento e dor que viria a seguir. Porém, quando o amor é cego, o mal enxerga no escuro. Jéssica Vidal, passou dezoito dias desaparecida, a família já não sabia mais aonde procurar, para a polícia, ela teria fugido com o namorado já que os parentes desaprovavam o relacionamento dos dois. O que ninguém fazia ideia era de que perto dali, em um sítio antigo com uma casa velha de madeira, Jéssica vivia acorrentada e alimentando-se de restos que o namorado jogava para ela após terminar de comer na sua frente. Todos os dias, ele aparecia por volta do meio-dia, trazia nas costas uma mochila preta com o nome de uma banda de rock estampada que ela mesma o presenteara, retirava uma vasilha transparente envolta em um pano de prato, abria uma pequena garrafa de água e servia-se com um deboche no rosto. ― Você é minha ― dizia ele, enquanto arrancava com os dentes a carne oleosa de uma coxa de frango ― ninguém mais está te procurando, não tem mais noticiários no jornal, ninguém sequer lembra que você existe, ― Enzo, se aproximou e abaixou-se de frente para ela ― seus pais vão se mudar, sabia? Você será minha para sempre.

A jovem estava suja e debilitada, mas ainda encontrou forças para chorar e implorar pela própria vida. Jéssica não sabe ao certo se o que viu foi uma alucinação por estar à beira da morte, ou se a morte realmente sempre andou entre nós.


Enquanto Enzo, acariciava seu rosto com um sorriso mórbido em seu rosto, uma criatura negra e aterrorizante sussurrava palavras incompreensíveis no ouvido dele. Jéssica usou o restante de forças que conseguiu reunir e soltou um grito de desespero e medo. Ao perceber que a garota era capaz de vê-la, a criatura esquelética e envolvida em fumaça negra ergueu seu braço pútrido em direção ao rapaz. Os olhos de Jéssica encheram-se de terror ao ver o antebraço e a mão da besta perderem a carne podre e formarem uma foice afiada feita de ossos retorcidos. A única coisa que conseguia fazer era assistir, não tinha mais forças para um segundo grito e manter os olhos abertos era cada vez mais difícil. Ainda assim, viu o sangue de Enzo esguichar na parede atrás dele, abaixou a cabeça e viu a foice da criatura cortando o tórax do rapaz de baixo para cima até sair pelo pescoço. Quando imaginou que seria a próxima a morrer, Jéssica avistou a figura de uma mulher surgindo pela porta e logo em seguida, uma luz branca e intensa tomou conta de toda a casa.

Jéssica acordou no hospital dois dias depois. Não fora capaz de contar a alguém o que tinha visto e nunca mais tivera notícias sobre o paradeiro de Enzo. Porém, ele a visitou quase todas as noites em seus pesadelos, às vezes, a imagem do ex-namorado se confundia com a horripilante criatura que o acompanhava naquele dia.

Subitamente, sua mente retornou ao presente ao ver um vulto escondendo-se nas sombras de um beco à frente. Atravessou rapidamente para a calçada oposta da rua, sem desviar o olhar do que quer que fosse aquilo que a espreitava. Porém, por mais que forçasse, sua visão era capaz de enxergar além da aterradora escuridão. Foi quando algo surgiu na penumbra da noite, um braço pálido que Jéssica não conseguia ver direito. Assustada, apoiou-se em uma cerca de ferro com um aglomerado de plantas de mau cheiro, seus olhos amedrontados não podiam desviar o olhar daquilo que se movia no beco. Lentamente, o braço e parte do corpo da criatura revelaram-se sob a luz da lua, que acentuava a palidez de sua pele. Jéssica concluiu, talvez um pouco tarde demais, que as alucinações que tivera no decorrer dos últimos dias, não eram de fato, apenas coisas da sua mente. Ficou apavorada, tentou correr, mas suas pernas não obedeceram, seus joelhos tremiam forte enquanto lutava para manter-se de pé.

Uma mulher sombria deixou o beco e avançou flutuando em direção a Jéssica, seus cabelos eram negros e compridos, pareciam estar nadando no ar, como se a gravidade fosse uma ilusão dos mortais, usava um vestido preto e longo, que conforme descia até os pés, transfigurava-se em uma fumaça densa e escura que não se dissipava com o vento frio da noite. A medida que a mulher se aproximava, Jéssica tateava as grades da cerca buscando uma forma de conseguir mover-se. A coisa olhava fixamente em seus olhos como uma serpente hipnotizando sua presa, esperando o momento certo para dar o bote mortal. Era impossível desviar o olhar. Num movimento rápido e suave, a mulher ficou face a face com Jéssica, o rosto da professora ficou paralisado em um semblante de medo e angustia, um turbilhão de imagens terríveis bombardeavam seu cérebro, era como se seu passado, presente e sonhos futuros tentassem atravessar ao mesmo tempo uma pequena porta em sua mente. ― Não se preocupe, não irá doer por muito tempo ― disse a criatura, próximo aos ouvidos de Jéssica ― você tem algo que preciso. Os ossos do corpo da professora começaram a quebrar, era uma dor insuportável, tão forte que tentou gritar, mas a criatura havia lhe roubado esse privilégio. Sentiu cada osso quebrando, pode ouvir os estalos e a pele rasgando. Finalmente, caiu ao chão contorcendo-se de dor e em poucos segundos morreu. A fumaça negra, aglomerada nos pés camuflados da criatura, subiu lentamente por todo o seu corpo, e logo que chegou ao final da cabeça voltou a descer. O corpo da assombrosa mulher assumiu uma nova forma, a do corpo de Jéssica. ― Talvez eu tenha mentido sobre ser rápido ― disse ela, enquanto observava o fim da desafortunada vida da professora.

A criatura agarrou forte o braço do cadáver e arrastou-o para o beco, até sumir completamente na escuridão.

Adam Griff e os Invocadores de AlmasWhere stories live. Discover now