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Estava no meu terceiro ano de faculdade e o primeiro semestre tinha começado algumas semanas antes. Coincidência ou não, a chuva que caía lá fora, tal como hoje, tinha feito com que me arrastasse até esta mesma biblioteca em busca de um novo título de leitura. Tinha percorrido imensas estantes e lombadas quando os meus olhos encontraram o livro perfeito: O vermelho e o negro, de Stendhal. Era dos meus livros favoritos, daqueles que lia e relia incontáveis vezes até, por algum infortúnio, perder o meu exemplar. Retirei o livro do seu aconchego e estudei o seu aspeto exterior antes de começar a andar de costas para sair daquele corredor, com a cabeça na lua e sem ligar nenhuma para a crença popular de que andar de costas ensina o nosso caminho ao Diabo. Claro que acabei por chocar com alguém.

Assustei-me. Tinha estado tão concentrado no livro que nem tinha reparado no homem que se encontrava mesmo ao meu lado, de pé, a olhar as estantes.

—  Peço desculpa — tinha ele dito, ao dar um passo atrás, tentando recuperar o equilíbrio da pilha de livros e papéis que transportava nos braços.

—  Eu é que deveria pedir desculpa. Estava tão distraído que nem o vi. — Baixei-me para apanhar as folhas caídas. — Ninguém me manda andar sem ver para onde vou.

Sorri de forma simpática ao devolver os papéis e subi ao andar de cima, onde todas as mesas de estudo se encontravam dispostas a toda a volta do espaço, numa varanda com vista para o piso térreo. Sentei-me na penúltima mesa. Normalmente ficava sentado no chão do andar de baixo, encostado a uma qualquer estante, mas tinha vestido calças novas e lavadas, acabadinhas engomar naquela mesma manhã antes de sair de casa.

Ele apareceu-me à frente pouco depois. Todas as mesas da biblioteca se encontravam ocupadas, pelo que a cadeira à minha frente era a única que sobrava. Ele perguntou-me se eu não me importava de que ele se juntasse a mim e eu empurrei a cadeira com o pé por baixo da mesa em resposta. Grato, ele caiu pesadamente no assento à minha frente, espalhando os papéis pelo tampo amadeirado.

Decidi meter conversa ao fim de uns minutos.

—  Não encontrou nada para ler?

Os seus olhos escuros levantaram-se dos papéis que estava a organizar para se focarem na minha cara quando percebeu que era com ele.

Ele era relativamente magro. Não tinha barba ou bigode e o seu cabelo, apesar de negro, era exactamente igual ao do River Pheonix, naquele filme com dois ou três anos chamado "Pequeno Nikita". As suas roupas tinham estilo, apesar de lhe darem um ar recatado e intelectual e era possível entrever a armação de uns óculos escondida por de baixo de um conjunto de papéis.

—  Não. Nunca encontro. — Soltou um pequeno sorriso e levantou umas folhas. — Os números acabam sempre por me fazer companhia.

Soltei uma gargalhada. Ele pareceu estudar-me.

—  Com que então faz parte desse grupo de pessoas que consegue olhar para uma folha de cálculo e tirar-lhe algum sentido.

— Pode dizer-se que sim — comentou.

Dobrei o canto da página que o meu indicador tinha estado a marcar, entalado entre as folhas, e pousei o livro no colo, fechado.

—  Os números e as contas nunca foram o meu forte. — Estendi-lhe a mão direita. — Sandro Silva. Estudante de sociologia.

Ele aceitou a minha mão e trocámos um aperto.

—  Rúben Faria, professor ajudante de matemática.

Lembro-me perfeitamente de como o meu queixo quase caiu, literalmente falando. Pelo que conseguia ver, tínhamos praticamente a mesma idade.

—  Bem me parecia que não estava no seu habitat natural.

Rúben (⚣)✔Onde histórias criam vida. Descubra agora