Aviões pela janela

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SE BEM ME LEMBRO, Belinda estava a uma pequena distância da liberdade

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SE BEM ME LEMBRO, Belinda estava a uma pequena distância da liberdade. A grade do jardim do reformatório. A loirinha do cabelo esvoaçante mordia o lábio inferior tentando gastar o menor tempo possível calculando por onde começaria a escalada. Decidira, então, pensar menos e fazer mais, como sempre acontecia nas histórias que a senhorita Tames lhe contava todas as noites. Os mocinhos, apesar de sempre vencerem, nem sempre partiam de um raciocínio bem elaborado.

Com as mãos trêmulas e suadas, ela ousou se aproximar do pedaço de parede que antecedia os ferros pelos quais subiria. Sorte dela que os encaixes eram do tamanho de seus minúsculos pés. Em dois ou três minutos, ela conseguira chegar a dois metros do chão, porém ainda faltava um, além dos três da descida do outro lado.

— Olha a louca! — Alguém gritou, e só então Belinda percebera o erro em seu plano. Era fácil visualizá-la dali se vista do pátio onde todos se organizavam para cantar o hino nacional.

De repente, ela estava no campo de visão de todas as crianças detentas e da coordenação do reformatório.

Michagueto! — Mal sabia que palavra pronunciara; era uma das infinitas que criara em seus tempos livres. Gostava de criar suas próprias coisas, a começar por seu vocabulário. Além disso, a criança não tinha afeição pelo aprendizado, já que nunca foi muito apta a aprender nem as linguagens nem a bendita matemática.

Ela bufou, tendo que jogar todas as suas ideias por água a baixo. Olhou para o chão e viu o seu diário. Seu peito doeu só de cogitar que estava esquecendo-o.

Sem pensar duas vezes, Belinda pulou. Graças ao Bondoso, nada lhe acontecera.

— Que bonito, senhorita Belinda. — A diretora Phillips aparecera diante da menina de onze anos.

A criança assoprou um fio de cabelo que atrapalhava sua visão.

— Se eu ainda tivesse um sobrenome, a senhora não precisaria me chamar de "senhorita Belinda", não é? — Pegando o diário do chão, a criança se colocou de pé.

No Belo Vilarejo, a cidade em que essa história se passa, bandidos e afins não eram muito tolerados e tampouco bem-vistos. Dessa maneira, os pais que colocavam as crianças nos reformatórios sempre retiravam seus sobrenomes assim que as enviavam para ali. Era como se quisessem limpar o nome da família.

— Se tivesse um sobrenome, teria uma família. Este não é o caso de nenhum de vocês aqui. Ninguém quer criar criminosos — com a voz grossa, a mulher que trajava um longo vestido preto, falou. — Não tem vergonha? Olhe só o seu uniforme, Belinda. Já não bastasse esses olhos...

A menina se olhou e percebera que se sujara toda. Seu olhar, porém, ela não podia visualizar, mas sabia que a diretora falava das cores diferentes. Lado esquerdo, castanho escuro; lado direito, azul oceano. Belinda, porém, achava magnífico ser agraciada com aquela característica; assim poderia pensar que era uma garota especial, talvez tivesse vindo até de outro mundo.

— Tenho uma família, sim. Ganhei isso dos meus pais no meu último aniversário lá. — Ela apontou para o diário. Em poucos segundos, porém, e vagamente, lembrou-se da mãe com o rosto banhado de sangue, ligando para a polícia. E, depois, de estar sendo carregada pelos homens e trazida até ali, seu lar atual. Seu pai não estava em casa, ele saíra depois de uma longa briga com a mãe de Belinda.

A mulher soltou uma risada enquanto alguns funcionários se aproximavam.

— Mas eu entendo a senhora. Acho que você não me vê com esperança, mas eu tenho muita. Para dar e para ven...

— Argh, criança! — Ela revirou os olhos, antes de se virar. — Junte-se aos outros. Depois passe na administração para receber o castigo.

Castigo. Belinda olhou para as mãozinhas já tão preenchidas por cicatrizes. Esperava não ter nenhuma surpresa como da última vez que, conformada em receber chibatadas nas mãos, foi surpreendida por uma nas costas. Uma não, três. Porque ela tinha falado três vezes fora de hora: na refeição, na aula e no quarto, antes de dormir.

Ela seguiu rumo ao pátio e se encaixou no último lugar da fila das meninas. Não tinha nenhuma amiga, mas entendia que elas apenas não a tinham conhecido direito, apesar de já estarem ali há tantos anos. Quando o fizessem, não a achariam tão estranha.

— Oi — Belinda disse baixinho para Cora, a que ficara em sua frente. A menina olhou para ela com raiva e deu-lhe um pisão despercebido. Bel sufocou um grito e se afastou.

Então, o hino começou a tocar no iniciar daquela segunda-feira e todos foram para as salas de aula. Cinquenta meninas em uma, cinquenta meninos na outra.

Belinda sentou próxima à janela, de onde poderia bisbilhotar a rua, ao invés de ter de escutar a aula da senhorita Collen, que ensinava matemática. Tinha que ter alguma coisa divertida nos números para que ela conseguisse prestar atenção, senão, era perda de tempo. Bel sempre esperava ansiosamente pelos dias em que veria a senhorita Tames, que lecionava Artes. Era esta a sua professora preferida e, bem mais que isso, uma pessoa que Bel guardava especialmente em seu coração.

Porém, era dia de prova. De matemática.

Estava lascada. Lascadíssima.

Seu plano de fuga dera errado, então, não tinha para onde correr. E ela não havia estudado nada.

— Concentre-se desta vez — falou a professora, olhando rigidamente para a criança a quem estava entregando o questionário.

Belinda olhou-a e sorriu. Sabia que por trás daquela rigidez havia um grande motivo; talvez tivesse levado chifre do marido e adquirira amargura desde então.

A garota bateu na testa desejando que aquele não fosse o motivo da senhorita Collen. Ninguém merecia infidelidade!

Lambendo os lábios, olhou para a prova em sua frente. Que liania era aquilo que via em sua frente? Não sabia nem por onde começar.

Antes de seus neurônios começarem a dançar em sua cabeça, um avião de papel atravessou a janela e caiu em cima de sua mesinha. Em cima de sua prova. Ela pegou-o e arrastou-o para baixo antes que alguém notasse o que tinha acontecido.

Belinda procurou lá de cima, da janela do segundo andar onde estava, o feitor daquilo e conseguiu ver apenas o vulto do que parecia um menino. Um menino jogara um avião para...

Ainda sem a pretensão de chamar olhares para si, Bel desfez lentamente o papel debaixo da mesa e leu o que estava escrito:

Nós vamos te ajudar a fugir.

Através dos Seus Olhos | Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora