A gota mais profunda

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Nota do autor:

  "Antes de começar a leitura, gostaria de encarecidamente agradecer a você por estar aqui disposto a ler minha obra. Este não é o meu primeiro trabalho publicado aqui na plataforma. Caso tenha interesse, recomendo o conto "Terminal" de minha autoria. Desculpe interrompê-lo(a) e tenha uma excelente leitura. (Fique a vontade para comentar ou mandar alguma nota, opinião, critica em particular)."


                                                                       Conto:


   Senti de imediato a luz do sol sob minhas pálpebras quando despertei.

   Optei a princípio em permanecer com os olhos fechados, absorvendo o brilho e a luz que caiam sobre mim. Assim fiquei por alguns segundos, sentindo a natureza penetrando em minhas veias e meu sangue fervilhando, provocando-me uma sensação reconfortante. Lentamente, a luz branca surgia em minha visão conforme eu tomava coragem e revelava meu castanho ao mundo. Senti uma pequena dor nos olhos pelo impacto da luz solar, mesmo me preparando para recebe-la de maneira estimulante. Essa visão do céu e sua imensidão transformou-se corriqueira nos últimos dias. Aqui estou, deitado e sentindo meu corpo em ritmo concomitante com as tranquilas ondas do vasto oceano ao meu redor e abaixo de mim.

   Entre mim e o Atlântico, um amigo recente: Hernando. Um barco pequeno e antigo, de inúmeras aventuras, onde as guarda conscientemente pra si. Quando a solidão nos domina, nossa imaginação se aflora, vivemos incontáveis histórias e infinitas possibilidades, sendo uma delas no meu caso, criar um laço de amizade com um barco e ter a liberdade de nomeá-lo.

   Minhas costas doem. Não recomendo dormir no deque de Hernando, feito com o mesmo material do gasto e negro casco. Há um pouco de água dentro do barco. Ergo-me, sento e contemplo a imensidão azul a minha frente através de meu olhar acompanhado com o frescor salgado do oceano. Por um momento eu o admiro, desafiando sua força e duvidando de sua vastidão. Às vezes, durante todo esse tempo que estou à deriva, tenho a singela impressão de que estou em um jogo e meu adversário está por toda parte, espreitando e vigiando-me, desejando o melhor momento para investir contra mim e contra Hernando. Em outros momentos, imagino-me fundido em um sentimento claustrofóbico dentro de uma cúpula, um invasor dentre uma disputa entre o céu e o mar. Eu preciso tirar a água do barco. Vou ao fundo onde há algumas coisas. Garrafas plásticas vazias, uma vara e mais alguns materiais de pesca, uma lata que até ontem tinha alguns sarnambis e o resto do meu jantar (espinhas e os vestígios de um peixe que consegui fisgar).

   Os recursos acabaram. A água doce sentiu seu momento de liberdade em um equívoco meu durante um instante de desatenção, deixou-me ao acaso há três dias, forçando-me a torturar minha garganta com o fluido amargo e salgado. Sinto minha boca seca e procuro trabalhar junto aos meus pensamentos vigorosamente para esquecer pormenores, mas quando você está envolvido por toneladas de sal, torna-se uma atividade mentalmente e fisicamente fatigante. Aprendi a lidar com o enjoo, foi, de todos os males, o que dominei mais rápido, a ponto de meus braços e minhas pernas sintonizarem em frenesim com o mar, como duas almas que não se conhecem, mas se misturam em uma dança vistosa e serena. Como descrevi, possuo um pequeno, mas útil equipamento de pesca. Uma vara junto a uma linha de aramida e nylon, o molinete não é lá grande coisa, mas ajudou-me bastante nos últimos dias, até quebrar sua manivela. Tentei arrumar de todas as maneiras possíveis ao meu alcance, sem sucesso.

   Conforme o tempo passa, o vento da maré bate em meu rosto, carregado de sossego e extraindo esperança, transformando a expectativa de que um dia chegarei a algum lugar em ilusão. Posiciono-me de bruços, o sol queima minhas costas sugando o restante de minhas forças. Aos poucos, me apoio a beirada de Hernando, meu queixo tocando a madeira e meus dedos firmes a beirada do barco, contemplo-me.

   Quem sou? – Digo em voz alta.

   Mesmo supliciando minhas vocais e utilizando o que resta de meus tímpanos para escutar o minúsculo fio do som que emite o que já foi um dia o complexo que expressava minhas vontades e sentimentos, ou pelo menos parte deles.

   Devo-lhe agradecer, Hernando, pelo companheirismo. De toda minha vida, resta-me ti, um barco velho, cheio de arrependimentos, esperando para morrer sozinho.

   - Sozinho...

   (Silêncio).

   Dói demais esse vazio profundo, esse exílio exorbitante de minha existência na amplitude do mar que me atravessa. É incessante minha busca interna para encontrar um significado dentro desse isolamento e vazio do universo. Fiz de mim um louco, gastando minhas falas, pensamentos para o nada, na esperança de pisar em terra firme novamente. Deixei de maneira débil me aprofundar em um caminho sem volta, onde revivo a todo instante cada detalhe de fatos que permitiria, de modo alternativo, uma situação diferente. Embaralho meu passado, minha memória, revivendo meu mundo, minhas perspectivas de modo individualista e oco. Não era para ser assim, mas é tarde demais. As vezes a solidão se torna uma companhia inevitável, afastando-o de tudo e de todos que permeiam não só o plano físico ao nosso redor. Penso em quais atitudes me tiraria desse barco, imagino quais ações me levaria para terra firme, mas aos poucos, exclusivamente por minha culpa, meu Norte se perdeu. Havia um Norte, mas inconscientemente optei por seguir um caminho distinto e me arrependo disso. Eu poluo aos poucos o mar que me contorna, trago a tempestade maculando o azul do céu, deixo morrer a última pétala de rosa.

   De todos os males, aqui eu posso ser eu mesmo. É impressionante a virtualidade de avaliar toda essa situação. Estou em um paradoxo: Mesmo me fazendo existir em grupo, tenho a solidão como condição de vida neste momento. Ela me manteve aqui ainda, me fez conhecer Hernando, me fez conhecer o oceano e o céu de forma irreversível. Vejo meu reflexo tremeluzente no Atlântico, meu coração silenciosamente dialoga com a dor, que se esvai em forma de lágrimas. Observo lentamente cada gota que cai sob o mar. Desabo.

   Milhões de pensamentos me visitam, o peito sente a melancolia e meus mecanismos de mudar essa situação o mais rápido possível não respondem. Digo coisas que não queria dizer, me expresso de forma errônea, palavras absurdas saem dos meus lábios enquanto a raiva e a angústia transformam-se em titãs em batalha, disputando um lugar dentro de mim.

   As lagrimas aumentam e fico alguns minutos chorando fora de Hernando. O mar acalma, o vento sopra e o sol me dá uma trégua. Só o tempo vai dizer até onde minhas lágrimas irão. Não era dessa forma que imaginei o meu contato com o oceano, poluindo-o com meus sentimentos, deixando cair tão pesada amargura de meus olhos, caindo devagar, tornando-se, de forma singela, a gota mais profunda que existe nesse mar.

   Deito, dessa vez olhando para o céu. Vou esperar.

   Talvez algum dia eu pise em terra firme.

   Talvez eu não acorde mais.

   Que o Tempo seja rápido em responder, pois a dor é forte.

A gota mais profundaOnde histórias criam vida. Descubra agora