Em um papel rasurado por canetas coloridas havia um poema chamado O Escritor, não tinha autor nem nada do tipo, apenas os versos:
O escritor escreve, cria, recria, reescreve.
O escritor narra, conta, relata, descreve.
O escritor ri, chora, se espanta, enlouquece.
O escritor fala, mas antes de pensar, esquece.
O escritor vê, observa, interage, está.
O escritor é um caminho torto, quase não sabe onde chegar.
O escritor reage, sente, explica e reexplica.
O escritor nasce, morre e só algo fica.
Palavras, sinônimos, letras, antônimos.
Sentimentos, as vezes públicos, as vezes anônimos.
Escritas simples para os que entendem melhor.
Escritas complexas para os que se aventuram no pior.
O escritor sabe, conhece, percebe, compreende.
O escritor pode, consegue, domina, entende.
O escritor julga, acha, reputa, crê.
O escritor somos nós, sou eu, é você.
Sentiu algo em seu coração, que batia mais rápido que qualquer carro em uma corrida, um sentimento de pena, pois, apesar de não ter o nome do autor do poema, ele sabia exatamente quem antes o escrevera; alguém que antes era um escritor formidável, alguém que antes sentia o prazer de escrever, alguém que antes faria de tudo para sentar e colocar para fora todos seus sentimentos, ele. O autor por detrás do poema, já não existe mais, ele mesmo sentiu isso ao deixar uma lagrima escorrer por seu rosto velho e enrugado. Pegou o pedaço de papel velho, dobrou em quatro partes e colocou no bolso.
Era estranho estar saindo de um lugar que passara toda uma vida. Era estranho deixar, para sempre, aquela carteira rabiscada, era estranho fechar, pela última vez, a porta que abria todas as manhãs, mas ele não era o mesmo.
Ao sair do cômodo o homem olhava para as paredes cheias das mais variadas fotos, elas que antes eram cheias de vida, agora estavam perdendo a cor e a textura, assim mesmo como o passado que, certa vez, visitara muito angustiante. As imagens repletas de pessoas que passaram por sua vida. Imagens que, uma vez, já significaram algo, porém hoje são apenas isto... imagens.
Colocou-as em uma caixa que levara consigo, uma por uma, relembrando de uma vez ser o garoto nelas. Hoje desejava ser. Hoje desejava voltar para essa vida que nunca mais verá. Fechou as cortinas que ficavam atrás das janelas, trancou algumas portas, retirou o vaso já vazio e rachado sob a mesa de centro; ele estava gostando daquilo, de pôr um ponto final no passado e deixar este guiar seu próprio rumo para o esquecimento.
Fechou a porta principal, trancou-a e colocou a chave debaixo do carpete felpudo e verde que dizia "seja bem-vindo", algo que jazia ali há não muito tempo. Saiu vagando pela rua pensando como vivera feliz. Era uma vida boa. Fizera muitos amigos, se mudara poucas vezes, brincou o quanto pôde, mas a vida não para pra ninguém.
Entrou em seu carro e decidiu que não voltaria para casa, queria ir para qualquer lugar, podia demorar o quanto quisesse, não havia ninguém o esperando. Saiu sem rumo, ligou o rádio na estação 4 e ficou ouvindo algo que não ouvia há muito tempo. Algo que realmente era bom de ser escutado. Queria que todos pudessem ouvir aquela música.
Não havia trânsito aos domingos, então relaxou o veículo para que pudesse aproveitar a vista. Era uma tarde linda, o sol estava quase descansando, o céu cor de rosa estava desaparecendo com as trevas que se aproximavam. Ele sabia exatamente aonde ir, e sem pensar duas vezes foi.
Ao chegar no destino desejado ele desligou o rádio, saiu do transporte, subiu ao teto e deitou-se olhando fixamente o sol desaparecer sob a escuridão. Fechou os olhos e pensou que naquela tarde ele vivera tão bem quanto outra. Pegou o papel rabiscado com o poema feito de grafite, lendo apenas em seu consciente, e decidiu que deveria mudar o que foi escrito. Olhou para o céu e sorriu quando uma estrela brilhou em resposta. E ali ficou escrevendo e reescrevendo seu antigo poema. Sua mente trabalhara muito bem, que ao terminar o senhor deixou mais uma lágrima cair ao perceber o que havia escrito:
Quem é O Escritor?
Porque é um Escritor?
Quem lhe deu autorização de escrever sobre algo ou alguém?
Me chamam de escritor
Mas eu nem mesmo sei
Sobre o que escrever.
Deus escreve certo
Mesmo em linhas tortas
Mas e quem escreve torto em linhas retas?
É um escritor? Um ator?
Não, não é ninguém.
Mas se ninguém escreve?
E se ninguém conta?
E se ninguém sente?
Então O Escritor não existe ou existe apenas em mim?
Eu já vi, eu já senti
E espero um reencontro.
Ora, se um deus é
Porque eu não posso ser?
Eu também quero ser um Escritor
Um que escreve e reescreve o amor, horror e terror
Ora, se seu deus é
Porque você não pode ser?
O escritor sabe, e só ele vê
O quanto difícil é a arte de escrever
Pela manhã nebulosa e uma tarde azul que se pode crer
Que O escritor somos nós, sou eu, é você.
Já era tarde, desceu do teto do carro e pegou uma pequena garrafa de vinho vazia que estava ali há mais de dois meses, desde a sua última loucura. Enrolou o novo poema, amarrou com um barbante. Retirou a rolha que lacrava o vinho e bebeu o último e mais saboroso gole. Colocou o papel dentro da garrafa, vetou a saída com a rolha e próximo ao rio ali perto, deixou-a ao chão em pé para que alguém pudesse ver e ler o que o autor desconhecido havia escrito.
Voltou para o carro e ligou o rádio, estava tocando a sua música favorita. Saiu lentamente e voltou para o lugar que apenas ele podia dizer qual caminho e como escritor, traçar pelas linhas tortas até chegar ao ponto final.
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O Escritor
Short StoryBem vindos a um lugar nunca antes visitado: meu coração. O Escritor é um conto que escrevi há um tempo fazendo uma junção a um poema que também escrevi há muito tempo e recebe o mesmo título do conto. São questionamentos que vivi durante um período...