EU ESTAVA AQUI, RASPANDO ESMALTE VELHO DAS UNHAS. O dia era monótono, chato, comum e ensolarado como vários outros. Não era monótono por ser chato, mas sim por ser esperado. O sol brilhava lá fora às seis da tarde, seus raios passavam por entre duas nuvens no céu azul e deixavam nelas manchas amarelas de tinta. E este brilho se contrastava a seriedade da minha pessoa sentada na sala de aula, de costas para a janela, pensativa. Sentado naquela pose, de pernas cruzadas e encarando as unhas descascadas, eu pensava no que tinha feito.
Ao longe, no dia ensolarado, crianças corriam e brincavam de pipa, mais próximo, carros buzinavam na avenida, e ali ao lado, pássaros e insetos cantavam no meio do pouco de natureza que cercava todo o campus universitário. E eu preso em pensamentos. A cabeça solta, não se preocupava. Eu estava despreocupado; fazia tudo o que queria, e se houvesse um erro, continuava despreocupado.
Por que chegara à faculdade mais cedo mesmo? É porque ali estava meu destino. Ouvi de longe vindo um barulho alto, agudo, e sabia que o som riscava e feria o céu. Encarando e descascando o esmalte velho de minhas unhas, em condição passiva, eu nem me interessei em reagir. Mas depois de alguns minutos de pensativa lerdeza, interrompi minha reflexão para olhar para trás.
De início, o que vi surpreendeu meu espírito, abriu mais meus olhos. Por que estava ali mesmo? Ali e tão cedo? Naquele lugar eu encontraria meu destino. E que destino.... Eu nunca tinha visto algo tão estrondoso e digno de atenção. Assustador, espantoso! Atiçou em mim uma nova emoção. O medo de perder tudo o que eu tinha conquistado e, ainda mais, perder o que ainda iria conquistar.
Hoje eu tinha tanta coisa para fazer.... Falar com meu namorado, pedir desculpas ao meu avô, reanimar minha mãe, dar conselhos ao meu irmão. Ainda estava por terminar de escrever os audaciosos planejamentos acadêmicos. Meu professor de Literatura Portuguesa se encantara com minhas ideias e planos. Pensava em me ajudar em meu projeto monográfico e me auxiliar em minhas produções de autoria pessoal. Eu seria um bom professor de português, sensível à literatura, conhecedor de muitos gêneros, o professor de quem muitos alunos gostariam. Mas meus planos foram cancelados de supetão, pois riscando o céu, fazendo muito barulho, lá vinha um avião.
Uma turbulência houve no alto do céu, acima das nuvens. Algo tinha dado errado, uma turbina explodiu e o avião caiu. Em seu mergulho, anunciava o encerramento de meus planos. E também de minhas mágoas, felicidades, desejos e pecados. O seu gigantesco barulho, que vinha tampando o sol que aparecia por entre nuvens, avisava a todos os moradores daquela cidade que um jovem egoísta e topetudo lhes seria tirado. Essa vida cruel, implacável, que é a minha; essa alma que, por mais que tente se elevar e ser mais que os outros, para sempre terá aquelas reles fraquezas que todo mortal tem, e além disso, não será nada.
Naquela hora, eu me lembrei de meu namorado, que ainda não era namorado, mas estava sendo cultivado. Encarei o avião que vinha trazendo várias pessoas. Como seria bom se a gente pudesse viajar! Sair do meio desse estresse de dia-a-dia, viver nossas alegrias e luxúrias em paz. Sem ter que sair de carro, sem ter que marcar horário. Será que, se eu morrer, essa pessoa com quem fantasio sonhos sentirá saudades minhas? Eu sentiria, e com dor. Eu ainda nem sei se ele vai me dizer sim, se vai me dizer não.... E lá vem o avião.
E por falar em avião, eis a mulher de quem eu herdei meus dons artísticos e minha sensualidade. Minha mãe, que está lá em casa, hoje cansada. Eu prometi que trabalharia com ela, lhe daria algum dinheiro. Enquanto não termino a faculdade, tenho que ajudá-la a construir uma casa, tenho que pedir perdão pelas minhas faltas. Ah,... mãe, como eu pequei. Depois de uma infância e uma adolescência te importunando, eu finalmente te compensaria ajudando nalguma coisa. Valeria a pena aguentar essa praga, eu teria reconciliação. Eu a compensaria fazendo pelo menos alguma coisa de útil. Mas lá vem o avião. Ela chorará minha perda amargamente.
E por falar em falta e em mãe, meu irmão! Ai, meu irmão. Tão novinho e já querendo se aventurar num mundo que pode traí-lo a cada vacilo. Eu ainda tenho que aconselhar. A gente briga, mas se ama. Será que ele vai voltar para a casa de ressaca? Será que estará fedendo? Não estarei aqui para ver isso. Eu me demoro muito em dizer eu te amo, mas adoro corrigir. E isso eu sei fazer muito bem. Sei de sobra. Mas minha alma é egoísta como a dele. Também quero ter experiências minhas, fazer tudo do meu jeito, quero minha vida para mim. E lá vem o avião. Inteirinho só meu.
Já vejo na cabine o copiloto apavorado, apertando botões e quase correndo de um lado para outro. Ele olha para mim e já é velho. Seus olhos arregalados me lembram meu avô me dando bronca por causa das barbaridades que acham que faço. Eu sou extravagante sim, faço o que eu quero. Meu crime não é só contra ele, é contra os mais velhos, talvez contra a minha família. Desde que me entendi por pessoa errada, eu não quero ser certo. Não! Eu não quero o certo deles, mas quero ser o meu certo. O meu jeito eu acredito que seja melhor que o deles.
Eu saí de casa mais cedo porque tinha brigado, não aguentava mais ficar lá com aquela velharia gritando em minhas orelhas baboseiras que eu nem iria escutar. Me irritei, sim, e quase agredi. Porque eu sou assim. Se me provocar, vai ter que aguentar a consequência de tê-lo feito. E eu sou agressivo. É até engraçado que sentirei saudades dessa gente toda depois que eu debati e afrontei com mil palavras sem dó. Eu tenho minhas falhas, minha decadência, mas também tenho minha importância e meu subir.
Assim como cai esse avião que vem em direção a mim, com o bicão severo e mortal, eu me caio agora em arrependimento. Meu peito dói, é claro, e minha cabeça lateja só de pensar nessas coisas todas. Mas eu continuo despreocupado, duro como pedra. Afinal, já que vou morrer, morrerei sabendo muito bem quem sou. O mundo sabe de quem se despede. E assim termina minha reflexão. Gostaria eu de fazer alguma coisa com ela, viver o resto desse dia e contar o que pensei para meus pais. Mas esta reflexão que tive aqui, sentado na cadeira da faculdade, é só para mim.
As sombras começam a cobrir a janela da sala. Sinto que minha alma se descola do corpo. Aqui se vai uma alma rebelde, que também é sonhadora, amiga, acolhedora, ajudante, pecadora, debatedora, egoísta, devassa, sedutora, iludida por pensar que é mais esperta. Aqui se vai quem sabe o que é, quem é todas essas coisas e mais um pouco. Lá vem o avião, com o bicão imposto a mim.
Eu não pedirei desculpas a quem devo, a quem está lá do outro lado da cidade esperando que eu tenha um bom dia de aula. Eles não saberão como eu morri, nem o que pensei antes. Estamos distantes uns dos outros. Ficarão sabendo pela televisão o que houve comigo. E eu morrerei assim, despreocupado, grosseiro. Quem sabe se longe deles eu cause menos dor? Mas esta briga, que me trouxe mais cedo a esta sala, talvez nos ensine a nos aceitarmos mais uns aos outros, assim, como somos. Mesmo tendo raiva de mim, chorarão uma saudade peculiar que é somente deles. E agora, neste dia ensolarado, eu morro com uma reflexão que é somente minha.
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Vejo um avião
RandomEsta é uma crônica escrita por uma alma que estava morrendo antes de morrer. Ou estaria sendo reconstruída?