Ato um: paranoia

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— […] trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco. — A garota contava ao compasso das gotas amareladas que caíam do frasco de remédio até a pequena porção de água no copo.

A chaleira apitava há algum tempo, a deixando frustrada, provocando sua ansiedade, junto ao fato de ter perdido a conta dos números algumas vezes. Provavelmente se superdosaria mais uma vez com o remédio, mas já não se importava. Madrugadas com enxaqueca, a base de remédio e cafeína já lhe eram rotina; na verdade, mal se lembrava de como era a sensação de acordar após uma boa noite de sono bem dormida — que não fosse induzida por calmantes fortes e áudios terapêuticos.

Engolindo o líquido de gosto amargo rapidamente, desligou o fogão puxando a chaleira pela alça enferrujada, a fim de colocá-la em cima da mesa, mas pelo peso do líquido a mesma se descolou do restante do objeto; em um movimento impensado, ao tentar salvar o café recém feito e ainda nem coado, Alice segurou a base, desistindo assim que sentiu sua pele queimar dolorosamente, o que resultou em mais uma queimadura na barriga com o líquido fervente que derramou ali.

Fechando os olhos com a dor, mordeu o lábio com força após soltar um grito alto e falho, esperando que o barulho não tivesse chamado atenção do meio irmão.

— Alice, o que está fazendo aí parada? — Luizy, como a garota chamava o rapaz de nome Seungyoun, se aproximou rapidamente, já entendendo a situação. — Está louca? Precisa ter cuidado, você se queimou toda.

Soltando ar pelas ventas, ele chutou a chaleira para longe, e puxou a irmã para o banheiro; ligou o registro na água fria e a enfiou ali debaixo do chuveiro, apertando os olhos junto com ela ao imaginar a dor que a mesma sentia. Luizy suspirou, e ela suspirou junto, já sabendo que tipo de sermão receberia naquele momento.

— Já cansei de falar que você tem que recuperar sua rotina. Quando foi a última vez que dormiu durante a noite como uma pessoa normal?

Alice facilitou o trabalho dele ao tirar sua blusa, erguendo os braços no ar, e aguentou mais alguns minutos de reclamação do mais novo sobre o quão feio havia sido a queimadura e como deveria deixá-lo a levar ao hospital assim que amanhecesse, senão o ouviria lhe dar sermão pelo resto da vida. Não seria diferente do que já presenciava diariamente, pensou consigo.

O silêncio prevaleceu, enquanto Seungyoun limpava o café do corpo da irmã, a qual prendia o lábio entre dentes e deixava uma lágrima ou outra cair por seus olhos. Nem todas elas eram sobre a dor da queimadura.

— Você precisa parar de pensar um pouco. Você está ficando paranóica, eu mal te reconheço — comentou, já passando uma pomada para queimadura qualquer depois dela já estar fora do chuveiro e devidamente seca.

Ouvir aquilo a machucava, mas o que mais lhe atingia era o tom de decepção na voz do rapaz. Deixá-lo desapontado era tudo que menos queria, mas era a única coisa que vinha fazendo no último ano.

— Você sabe que eu não posso.

— Sim, você pode!

— Eu estou ficando velha. Cada dia que eu passar sem me esforçar para provar minha teoria, mais humilhada eu vou me sentir por ser taxada de louca.

— Você tem vinte e quatro anos, pelo amor dos nossos falecidos pais, para de achar que o mundo vai acabar se você descansar por uma semana. — Rolou olhos, vendo a mais velha respirar fundo.

Ele conseguia enxergar a depressão profunda em seus olhos. Eles não continham mais o brilho que costumavam ter anos atrás; toda a vida que podia se lembrar das orbes quando era pequeno, ou quando comemorou com ela quando a mesma passou na entrevista para seu emprego dos sonhos, não jazia mais ali. Tudo que via era uma imensidão de âmbar triste e vazio, como se estivessem mortos, e talvez ela já estivesse quase na mesma situação, já que mal comia ou se preocupava com a saúde física e mental.

— Por favor?! Que tal fazermos uma viagem? Vou com você, pode ser legal! — Abaixou a blusa dela após ter cuidado de toda a queimadura, acariciando a lateral de seu rosto em seguida.

Sorriu ao vê-la fechar os olhos e sorrir levemente aproveitando o carinho no alto da bochecha. Sim, ela ainda sentia, e sentia muito na verdade, mas na maioria do tempo não via motivos para transparecer suas emoções e sentimentos. Havia se tornado uma pessoa — que aparentemente era — indiferente e apática. A feição vazia, sem expressão ou reação já lhe fazia jus à sua situação deplorável, e a vizinhança até havia lhe apelidado de nomes, que para eles eram engraçados, mas para ela eram mais um empurrão em meio a depressão profunda para qual caminhava não tão lentamente.

Com um assentir silencioso, ela arrancou um sorriso grande do outro, o qual fez seu coração palpitar mais forte e rápido por um momento. Nem imaginava onde estaria, e se estaria, se em todo aquele tempo Seungyoun não tivesse permanecido ao seu lado. Ele não era seu pilar ou sua base, mas de fato era uma presença indispensável em seu cotidiano, já que ele era o único que a podia arrancar um sorriso ou a tirar um pouco da realidade distorcida que havia criado dentro de sua própria mente. Seungyoun era seu filtro, que tentava lhe proteger de tudo de ruim que pudesse chegar aos seus ouvidos ou lhe atingir.

Tudo era muito incerto na vida de Alice, principalmente após ser demitida de seu trabalho de cargo alto na empresa de seus sonhos — a NASA, o qual era um nome importantíssimo para qualquer um que tivesse um mínimo conhecimento de tecnologia e ciência —, mas as únicas coisas que tinha certeza naquele momento era que precisava provar sua teoria, a mesma que havia a feito ser despedida; a mesma que provocou todos a verem como uma lunática incorrigível; a mesma que podia ter certeza que um dia iria provar, mas para isso ela precisava abrir mão de tudo, e todos se necessário, e ela estava disposta a isso.

Sua certeza maior, entretanto, era que sua vida profissional como cientista havia sido arruinada logo no início dela, e ela precisava reverter isso, mas acima de recuperar seu status e integridade, ela queria mostrar para o mundo que tudo não passou de uma injustiça e que os loucos eram eles ao desdenharem de seu raciocínio e inteligência. Queria fazer diferença no mundo, fazendo a descoberta que muitos tanto falavam sobre, mas só ela teria a coragem de provar; ser reconhecida era seu desejo.

Não haviam muitas coisas as quais ela já não tivesse tentado, ou pessoas às quais ela já não tivesse tentado contato para pedir ajuda, mas ainda precisava checar uma das pequenas e últimas hipóteses dentro da bolha enorme de possibilidades existente em sua mente que borbulhava de ideias; e para isso Alice precisava ir atrás do coreano Han Seungwoo, que poderia ser a última gota em caminho ao seu total fracasso, e provável motivo para que ela desistisse de tudo e de si mesma também; com sorte, ele seria sua salvação e o clique que faltava para mudar todo o mundo como todos o conheciam.

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⏰ Última atualização: Sep 18, 2019 ⏰

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