A Coruja e as Rochas

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          Na aurora da humanidade, a Terra era dominada pela fauna, pela flora, pelas rochas, minérios e minerais. Todos eram vivos e comunicavam-se, tudo em uma mais completa e perfeita harmonia.

          Cada grupo vivia em seus respectivos reinos: a fauna vivia somente com a fauna, a flora somente com a flora... Assim todos os grupos se dividiam e viviam suas vidas, sem distinção ou preconceito, porém em algum momento essa forma de divisão mudou.

          Grandes reinos mistos surgiram, como o Reino do Barranco: O maior e mais mesclado reino existente. No principio tudo era perfeito e a ideia de misturar os seres e elementos naturais era boa, mas, como todas as sociedades, esta se tornou corrupta, escravocrata e caótica.

          Os animais e plantas acreditavam serem superiores aos que estavam abaixo deles, como a terra e as rochas, até mesmo usavam gemas e pedras preciosas como moedas de troca entre si.

          Porém, como toda regra, havia uma exceção. As sabias e humildes corujas não se consideram melhores que qualquer outro elemento daquela sociedade. Uma delas (em especial), Sofos, viu o que aquele reino, a início perfeito, tinha se tornado. Visualizou por completo a total perversão de sua essência pura e natural.

          Sofos costumava iniciar conversas públicas nas praças do reino. Fazia reflexões, com aqueles que ali estavam, sobre política, democracia, justiça e assuntos diversos que divergiam opiniões. Geralmente, o seu "público" eram as outras corujas, as rochas e a terra (os seres que seguravam o barranco e os últimos na hierarquia daquela sociedade) e, ultimamente devido a sua fama que crescia a cada dia, o rei (que tentava controlar o sábio), as águias do alto conselho, que estavam abaixo somente da própria majestade, e outros diversos animais e plantas também se faziam presentes.

          — Vocês conhecem a si mesmos? Sabem qual função exercem nesta sociedade? — Sofos questionou.

          O silencio perdurou no ar, como se pensassem em uma resposta, até que o rei, com os olhos brilhando e um sorriso orgulhoso, disse:

          — Eu mantenho este reino de pé e funcionando, assim como fez o meu pai e o meu avô antes dele. — E, ao falar, o leão deu uma única bocada em três pobres camundongos que imploravam por perdão.

          — Mantêm mesmo? — Disse Sofos, sorrindo de forma irônica, ao observar o rei.

          O leão, o Rei Sol, desfez o sorriso e fitava aquela coruja, robusta e de grandes olhos amarelos, com um olhar cheio de ira que jamais direcionou a qualquer outro ser.

          — Como ousa contestar a palavra do nosso rei?! O enviado de Deus para nós! Duvidar de Sua Majestade é duvidar da palavra de Deus!... — Gritaram as águias na defesa do leão.

          — Existe realmente um Deus? — Perguntou, por fim, Sofos.

          — Basta! — Rugiu o leão. — Prendam este herege! — Seu rosto queimava no mais escarlate tom.

          Com sua ordem, as águias levantaram voo e, com a velocidade do vento, acertaram Sofos com suas garras afiadas.

          — Você tem duas escolhas, corujinha... — O rei disse, de volta com seu sorriso amarelo desdenhoso. — A primeira é renunciar estas ideias e a segunda é morrer. Simples! Qual escolherá? — E gargalhou.

          — Prefiro morrer a abandonar minhas ideias! — O pensador gritou, ao tentar libertar-se das garras de seus captores.

          — Que assim seja! Morrerás para o veneno da serpente. Eu, Rei Leão III, soberano do Reino do Barranco, sentencio-te a morte! — E riu consigo mesmo, da maldade que estava fazendo.

          As águias do alto conselho levaram Sofos para a praça onde seria executado e o trancaram em uma gaiola improvisada. Os seres, que gostavam do sábio, madrugaram ao redor da prisão do pensador.

          No romper da manhã, o carrasco chegou e os animais e plantas observavam de longe. Quando a serpente verde-esmeralda se aproximou da gaiola aberta, as rochas rolaram desenfreadamente até Sofos.

          — Parem as rochas! — O rei rugiu já irado.

          Tentaram impedi-las, mas não conseguiram. As rochas eram pesadas e fortes.

          — Não parem a execução. Meu fim chegou, porém ainda não morrerei... — Disse Sofos às rochas.

          — Certo. Não pararemos, mas agora entendemos a nossa função nesta sociedade... — As rochas disseram, timidamente e com certa tristeza. — Entendemos que, diferentemente do rei, nós mantemos este reino de pé, ainda que os poderosos nos humilhem, nos escravizem e nos subjuguem. Ainda mostraremos o poder da maioria. — E, ao falarem com o sábio, afastaram-se.

          Com a ida das imensas rochas, a serpente letal fez o seu trabalho. Findando com a vida mortal do sábio e iniciando a sua presença imortal nos seus questionamentos, que ficariam para sempre com aqueles seres.

          Na sua morte, até os céus choraram. As tempestades de cor azul meia-noite lavaram a tristeza dos seguidores de Sofos. As rochas, não desejando ficarem mais naquele reino, se moveram em direção ao rio logo abaixo do barranco, que serpenteava e se perdia entre as matas e os vales infindos, causando um grande desmoronamento.

          Naquela primavera que se seguiu, as flores não mais desabrocharam, as árvores não cresceram e novos tiranos, assim como novos animais, não mais nasceram. Agora, aquele reino era mais uma lembrança longínqua dos seixos imortais que descansavam no leito daquele rio.

A Coruja e as RochasWhere stories live. Discover now